Prosseguimos hoje o relato de António Alçada Baptista sobre “A Aventura da Moraes”. Trata-se de um testemunho fundamental para compreender o papel dos católicos inconformistas na preparação da democracia. Na fotografia temos Emmanuel Mounier, que António não conheceu, uma vez que morreu em 1950, e Paulette Mounier, sua viúva, essencial para a publicação da obra de Mounier na Moraes – designadamente o “Manifesto ao Serviço do Personalismo”, traduzido por António Ramos Rosa.
«A verdade é que, com a mesma dispensa da interrogação e da dúvida, no mesmo quadro “eclesial”, com a sua disciplina, a sua inabilidade, os seus diretores de consciência, o seu clero, o seu catecismo, a sua liturgia, as suas cantigas paroquiais, era fácil a tentação de aderir àquela ideologia redentora, esmagados pelo peso de tantos privilégios perante tanta injustiça no mundo. Neste período, que pessoalmente me foi muito difícil, tive algum apoio de certos católicos, olhados com muita desconfiança pelos aparelhos da Igreja e do Estado. Entre esses estava o José Sebastião da Silva Dias – ao tempo inspetor da Polícia Judiciária – que me aconselhou a assinatura da revista “Esprit”. Foi assim que tomei contacto com o pensamento de Emmanuel Mounier. Com ele acreditei na possibilidade de uma presença intelectual e cívica a partir de um catolicismo aberto e interventor que, de certo modo, se reclamava da experiência daquela revista e de toda a atividade que se desenvolvia à sua volta. Essa minha experiência foi vivida nos meus primeiros anos de advogado. A visão de Mounier, num mundo intelectual inteiramente contaminado por uma visão materialista dialética do homem, da sociedade e da história salvaguardava-me a possibilidade de manter o quadro da minha educação tradicional, que não queria largar, e ao mesmo tempo permitia-me a rotura com a prática do regime e da Igreja. Eu não tinha ainda trinta anos, exercia advocacia em Lisboa com algum êxito profissional, mas como não fora educado a “tratar da minha vida”, a profissão de advogado dava-me uma certa incomodidade de viver. Coincidente com essa minha fase de desajustamento interior, estava à venda uma livraria-editora, a Livraria Moraes. Editar e vender livros tinha mais que ver com a minha relação com o mundo e, juntamente com um livreiro amigo e dois amigos meus, resolvemos comprá-la. Só um de nós tinha algum dinheiro e a sociedade foi comprada com grandes facilidades. A experiência não foi muito boa e os outros sócios venderam as suas quotas. Entretanto, tinha tomado contacto com uma nova geração de católicos com preocupações idênticas às minhas. Todos recém-formados, tinham-se ligado através do Jornal Encontro e do Cine-Clube-Católico. Eram o Pedro Tamen, o João Bénard da Costa, o Nuno de Bragança, o Alberto Vaz da Silva, o José Domingos de Morais, entre outros. A saída dos primeiros sócios coincidiu com o nosso conhecimento e então, com os mesmos “ideais” e um grande empenhamento, resolvemos fazer da editora o instrumento de atuação e realização de algumas das nossas preocupações. De todo o grupo, só o Pedro Tamen ficou formalmente ligado à sociedade, mas era, de certo modo, o representante de todos os outros. Juntávamo-nos com frequência para planificar a ação da editora, numa perspetiva do que então se chamava “apostolado”. Um fenómeno de que imediatamente tomei consciência foi o de que pouca gente compreendeu a minha resolução de deixar a advocacia, de certo modo prometedora, para me fazer editor. Não digo já a reação das pessoas metidas no sistema ou a dos homens da minha família que estavam orgulhosos e tranquilos por me verem singrar na vida, mas muitos padres e católicos, que ao nível da linguagem me falavam em atitudes de “serviço” e “apostolado”, perante aquela minha ação concreta, diziam-me que eu tinha feito uma grande asneira em trocar um escritório com uma atividade já razoável por uma editora, até porque “isso dos livros nunca deu nada” (como era surpreendente a atitude de muitas famílias “cristãs” perante a vocação sacerdotal dos filhos, como se essas opções devessem ser tomadas pelos “outros”, sendo a obrigação dos “nossos” a de se integrarem na “normalidade”). Com a vinda daquele grupo, a Livraria Moraes começou a viver a sua epopeia. Esta atitude épica e apostólica iria determinar em grande parte o fracasso da empresa. A verdade é que nunca me passou pela cabeça que tínhamos nas mãos uma empresa comercial sujeita a critérios de rentabilidade e julgava que, como nós, alguns milhares de portugueses estavam ansiosos por livros que iam ao encontro de preocupações comuns, quer no que dizia respeito à liberdade da Igreja, quer à liberdade do cidadão. Todos esses, sedentos de novas ideias, iriam acorrer aos livros que publicávamos e a editora encontraria na sua justificação a sua viabilidade. Naquela época as edições eram, normalmente, de três mil exemplares e achava que havia, pelo menos, três mil pessoas em Portugal com as mesmas ansiedades que nós e que, por isso, depressa iriam esgotar as edições. Foi um cálculo errado. A primeira coleção lançada foi o “Círculo do Humanismo Cristão”. O humanismo era então uma das muitas palavras-mito que implicava uma outra visão da vida: uma forma de compromisso e solidariedade com vista à alteração das estruturas de uma Igreja, que considerávamos hipócrita e tíbia, e de uma sociedade que tínhamos como injusta. Para facilitar a compra desta coleção, ela poderia ser feita mediante uma quota mensal de 25 escudos, que daria direito a um livro de dois em dois meses, independentemente do preço de venda ao público que era sempre mais elevado. Na prática, as assinaturas nunca foram além das quatrocentas e os livros que publicávamos, dos grandes autores “progressistas” e “libertadores” desse tempo, iam-se acumulando no armazém. No entanto, o meu entusiasmo era tal que isso não era uma questão a considerar : em bola de neve, cada vez íamos editando mais livros perante a indiferença da sociedade portuguesa, que tinha um vago conhecimento, sobretudo através dos jornais afetos ao regime, de um grupo de rapazes católicos “progressistas” (os tais peixinhos vermelhos numa pia de água benta) que, através da Livraria Moraes, faziam a sua ação “subversiva”. É neste quadro de iniciativas que nasce “O Tempo e o Modo”. Parecia-nos imprescindível uma revista para a ação que estávamos a realizar. Demos à revista o nome, escolhido por Pedro Tamen, de uma coleção que já existia na Moraes. Embora nem todos concordassem com uma ação política “católica” e entendêssemos que os católicos deviam integrar-se nos vários partidos com os quais sentissem afinidades, era muito importante, por razões táticas internas e pela necessidade de contactos com os partidos democratas-cristãos doutros países, que alguns católicos se reclamassem de uma intervenção política. Aliás, as razões por que esses partidos se formaram lá fora foram essencialmente táticas. A Alemanha e a Itália, depois do nazismo e do fascismo, ficaram com as instituições políticas destroçadas e era necessária uma organização de base já existente, o que só havia na Igreja, com um pároco em cada paróquia. Na França, igualmente, após a ocupação e a Resistência, a mesma necessidade se impunha. Daí a artificialidade que estes partidos sempre tiveram. Assim, em todas estas situações surge a tentação do Partido Democrata-Cristão. Após a guerra, em 1946 ou 1947, como a situação política não era estável, contou-me o padre Abel Varzim que o Cardeal Cerejeira lhe pediu para ele fazer alguns contactos entre a classe política no sentido de saber se, de um momento para o outro, as condições da vida política se modificassem, eles estariam dispostos a alinhar num partido democrata-cristão. Mas avisou-o: “Olha que isto é uma iniciativa tua e eu não tenho nada com isso. Se me perguntarem, digo que não”. O padre Abel Varzim fez uma ronda, inclusive entre ministros, e todos lhe asseguraram a sua colaboração. Infelizmente, um deles, de que eu não digo o nome porque era pai de um grande amigo meu e porque eu sempre o tive por pessoa muito séria, acho que por dever de consciência foi dizer ao Ministro do Interior, que era então o Dr. Trigo de Negreiros, e a coisa ficou por ali sem outras consequências. Como veem, a democracia cristã era um recurso de crise e era assim que eu a interpretava. Em Portugal, naqueles fins dos anos 60, essa iniciativa tinha uma grande utilidade para a Igreja, era, indiscutivelmente, um dos apoios do regime e havia todo o interesse em quebrar aquele bloco. Por outro lado, para o regime tornava-se mais difícil dizer que éramos comunistas.
Esta posição não era fácil de defender porque as pessoas, nomeadamente a juventude, não tinham muito sentido prático e os acontecimentos de Maio de 68 tinham criado grandes alterações sem relação com os ideais e aspirações da política. Em relação à colaboração com os partidos demo-cristãos no estrangeiro, devo dizer que o único e franco acolhimento que encontrei foi a Democracia Cristã italiana, com quem mantive contactos, que, após o 25 de Abril, passei ao Adelino Amaro da Costa. Estava-se em plena guerra fria e, tanto a Democracia Cristã francesa como a alemã, consideravam o regime de Salazar e o dos ditadores latino-americanos aliados seguros contra o comunismo e recusaram qualquer contacto. Além da Democracia Cristã italiana, só tivemos apoio de intelectuais, entre os quais é justo salientar a colaboração e a disponibilidade de Jean-Marie Domenach, ao tempo diretor da “Esprit”, que inclusive foi impedido de entrar em Portugal quando, a nosso convite, vinha fazer uma conferência, e sobretudo Pierre Emmanuel, então presidente da “Association Internationale pour la Liberté de la Culture”, que nos deu um apoio sistemático e regular. Toda a ação que estávamos a desenvolver impunha a necessidade de manter contactos com a oposição tradicional. É preciso lembrar que, entre os católicos e os democratas, havia o imenso fosso de que já falei. A democracia não tinha, entre os católicos portugueses, qualquer tradição. Houve exemplos isolados dos padres Alves Correia, dois irmãos que manifestavam publicamente as suas ideias democráticas e um dos quais morreu no exílio. Em 1945, nas primeiras eleições feitas com abrandamento de censura, que me lembre, só o Dr. Vieira da Luz tomou, como católico, uma posição pública contra o regime. Quando o Bispo do Porto foi exilado, a Igreja portuguesa não lhe deu o mínimo apoio e poucas foram as vozes que com ele se solidarizaram. Nas eleições de 1961, alguns católicos apoiaram a oposição: o Francisco Sousa Tavares e o Francisco Lino Neto são os que recordo e, ao candidatar-me nesse ano pela oposição no distrito de Castelo Branco, julgo que eu e o Lino Neto fomos os primeiros católicos a candidatar-nos contra o regime.


