Importa ouvir António Alçada Baptista, que se tornou o centro do impulso, que teria uma grande importância na preparação de um novo clima que poderemos classificar como democrático:
«A experiência da Moraes, e de todas as iniciativas que dela resultaram – O Tempo e o Modo, Concilium, Association pour la Liberté de la Culture -, poderá ser mais bem compreendida se considerarmos a situação psicológica e moral de uma certa área da sociedade portuguesa – a dos filhos da burguesia católica tradicional – perante o regime e as estruturas da Igreja naquela época. É preciso ter presente que, nesse tempo, a Igreja, o Exército, o funcionalismo público e a burguesia da província (estruturalmente ligada à Igreja) constituíam as forças sociais de apoio da situação saída da Revolução de 28 Maio de 1926. Era a poderosa força da inércia perante a frágil força da mudança, ademais perturbada pela simbiose dificilmente separável da agitação e da demagogia que caracterizou uma boa parte da expressão política da Primeira República. Ainda sobre a burguesia da província, é preciso lembrar que, até à década de 60, Portugal era uma sociedade rural e que o êxito político de Salazar foi o de ter sabido aproveitar os choques provocados pela Primeira República sobre a província e a religião – a ordem, a estabilidade, o imobilismo – para recuperar essa força poderosa mas incapaz de segregar os seus próprios dirigentes e de organizar a expressão do seu poder. Na minha visão da infância e da adolescência, Salazar era o procurador, em Lisboa, dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios e dos padres: do que julgavam ser os seus direitos e das suas curtas aspirações. As interpretações materialistas dialéticas que se fizeram sobre este período da nossa história são, no meu entender, construções abstratas inteiramente desligadas da realidade que conheci. Por isso, na fundação da Moraes, a reação destes “filhos da burguesia” teve muito mais que ver com uma postura ética que se exprimia publicamente do que com uma ação deliberadamente política. Tanto assim que os elementos do seu núcleo fundador – João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva e eu próprio – após a queda do regime, mantiveram-se à margem dos partidos políticos, sem compromissos de chefia ou mesmo de simples militância. Como grande parte de toda esta ação da Moraes esteve ligada à minha própria iniciativa e atividades, sou obrigado a referir alguns aspetos que, de algum modo, se podem considerar autobiográficos. Como já tenho dito, fui educado numa família católica tradicional, onde o texto cristão era vivido com algum empenhamento e rigor, não obstante ficar limitado a uma interpretação simplista e redutora da vida e da mensagem cristã. Era uma identificada burguesia católica da província, um típico fenómeno da ruralidade, cuja subsistência não provinha do trabalho, do comércio, da indústria ou do funcionalismo, mas da propriedade rural. Isso tornava possível uma vida que não estava imediatamente referida à pressão das necessidades, dado que o recebimento das rendas pelo S. Miguel era uma rotina de tal modo aceite pelos “parceiros” sociais que nela intervinham, que permitia que se passasse ao lado da chamada «luta pela vida». Mesmo no meu caso, que dentro dessa burguesia pertencia a um ramo “letrado” – bisavô e avô advogados e pai médico -, o curso e a atividade profissional eram mais uma posição na hierarquia profissional do que um meio de subsistência.
Pessoalmente não me lembro de que meu pai cobrasse honorários pelo exercício da medicina. Esta educação ministrada para uma visão estática do mundo e da vida e uma existência que, pela parte dos filhos, era vivida sem preocupação quotidiana de «angariar» os meios para o “sustento”, dava-nos uma certa disponibilidade para a receção e o cumprimento das “doutrinas”, sem que elas fossem inquinadas pelas situações de subsistência. Poderia dizer-se que, da própria natureza da inserção social e dos erros que ela continha, decorria uma relativa independência nos projetos de vida e, consequentemente, a possibilidade de assumir uma atitude cristã cujas consequências não se refletiam imediatamente na situação material que se estava a viver. Assim se colhiam da infância os ensinamentos de um catolicismo bondoso, com exemplos de vidas santificadas pela dedicação e serviço dos outros, ensinamentos piedosos que nos eram ministrados pelas santas mulheres, que encontravam na religião e nos pobrezinhos a realização dos ditames de uma consciência moral e religiosa que assim interpretava os “deveres para com Deus e para com o próximo”. Esta burguesia encontrava nos pobrezinhos “dóceis” e nos padres os seus únicos cúmplices e tudo o mais eram inimigos: os operários (os pobres “revoltados”), os escritores, os liberais, os filósofos das “luzes”, os republicanos e até o Estado representado pelo “fisco”. Diria ainda que esta especial inserção na estrutura social, ajudada pela própria pedagogia religiosa, era, por sua natureza, uma situação geradora de culpa e de medo, com que ficou inquinada toda essa geração. O Colégio dos Jesuítas, em Santo Tirso, onde fiz a quarta classe e o Liceu, nomeadamente através da influência do Pe. António de Magalhães, formou-me na convicção de que “um católico tinha uma função específica contra as “forças do mal” que se tinham apoderado do mundo”. Os republicanos e a maçonaria eram os representantes dessas forças: estava-se então no rescaldo das perseguições religiosas da Primeira República e ouviam-se ainda, acesos e vibrantes, os ecos da revolução “redentora” do 28 de Maio. Não nos ensinaram a “tratar da nossa vida”, pois um católico tinha uma missão a desempenhar no mundo ao serviço da verdade e da justiça que emanava da mensagem de Cristo.
Foi com essa disposição interior que vim para a Faculdade de Direito de Lisboa e, durante os primeiros anos, sofri o embate das estruturas reais da Igreja e do Estado no seu afrontamento com a doutrina cristã, cuja contradição me começou a parecer evidente. Uma consequência daquela culpabilidade cristã manifestou-se na atração pelo comunismo.


