Que melhor modo de prosseguir esta caminhada, senão reproduzir ipsis verbis as palavras de Edgar sobre Helena Vaz da Silva?
Na época da ditadura, em 1965 ou 1966, fui convidado a ir a Lisboa pela revista “O Tempo e o Modo”, dirigida por António Alçada Baptista. “O Tempo e o Modo” desenvolvia uma resistência intelectual obstinada, que lhe valeu o branqueamento frequente de inúmeras páginas. Descobri em volta de António um grupo jovem, ardente, de reflexão, talentoso, no qual se distinguia a juventude, o ardor, a reflexão e o talento de Helena Vaz da Silva.
Que deslumbramento o meu ! A Helena apareceu-me como um ser solar, “a minha irmã solar”, disse-lhe eu. E o nosso elo imediato enraizou-se ao longo dos anos, aprofundou-se numa fraternidade infinita. Voltei várias vezes a Lisboa e todas as vezes era a alegria dos reencontros com os amigos de “O Tempo e o Modo”, com a Helena, com o Alberto cuja personalidade me inspirou um sentimento muito profundo que completou a minha ligação com a Helena.
De 1965 a 1973, a Helena e a maioria dos seus amigos do grupo de “O Tempo e o Modo”, sofreram em curtos anos uma evolução comparável a meio século. Partindo de um catolicismo que se tornava cada vez mais social, abriram-se a todas as correntes de cultura, incluindo as da contra-cultura californiana, e creio que viveram com exaltação e avidez uma evolução tão rápida que em 6-8 anos transpuseram meio século e os fez mudar de mundo e de tempo.
Voltei e fiquei instalado em casa deles na altura da revolução dos cravos. Portugal estava a abrir-se. A Helena levantou voo como uma ave migratória até então encarcerada na gaiola. Ajuda a lançar o “Expresso”, funda a revista “Raiz e Utopia” na qual tive a alegria de colaborar, desdobra-se em todos os domínios culturais acabando naturalmente por presidir ao Centro Nacional de Cultura. Outros textos evocarão as suas múltiplas actividades entre as quais as do Parlamento Europeu. Por meu lado gostaria sobretudo de insistir na sua energia resplandecente, na sua abertura extrema, no seu espírito europeu ao mesmo tempo que universal, como o é todo o grande espírito europeu.
Em 2001 ela ofereceu-me, no meu aniversário, o mais belo presente do mundo, um colóquio “Pensar o Milénio” que organizou em Sintra em torno das minhas ideias. Desse colóquio resultou um livro, que ela compôs com arte e ternura.
Esse livro, nosso filho espiritual, ela não mo pôde entregar pessoalmente, por ocasião da cerimónia que organizara com esse objectivo em Julho de 2002. A sua energia indomável, a sua coragem, o amor do Alberto e dos seus filhos haviam-lhe permitido ultrapassar uma doença reputada incurável. Em Junho desse ano eu encontrara-a curada, o mal parecia vencido, e jantámos juntos à beira Tejo, com ela resplandecente, afectuosa e forte.
Mas o mal recalcado permanecia escondido, e retomou a ofensiva. Quando vim a Lisboa em 12 de Julho para a cerimónia que ela organizara, encontrava-se hospitalizada. Eu quis vê-la, mas, por “coquetterie”, ela preferiu que nos ficássemos por uma conversa telefónica. Voltei a Paris, não demasiado inquieto, certo de que a sua força vital levaria a melhor uma vez mais.
E um dia em Agosto, subitamente um telefonema de um dos seus filhos informa-me do seu falecimento.
Continuo inconsolável, mas a Helena habita indefectivelmente em mim, resplandecente como no primeiro dia, luminosa para sempre.
Edgar Morin


