Edgar Morin tem uma ligação especial a Portugal e manifestou desejo de o deixar claro neste momento de sua vida, quando jubilosamente ultrapassa o limiar dos 100 anos de idade. Subscreveu, por isso, um testemunho singelo e impressivo, onde fica clara essa relação e que constitui a demonstração de um apreço especial.
«António Alçada Baptista, que animava, nos anos 60, a oposição cultural ao regime de Salazar, convidou-me a ir a Portugal fazer uma conferência no quadro das suas atividades democráticas. O meu nome foi-lhe sugerido pelos seus amigos da revista Esprit, entre os quais Jean-Marie Domenach. A partir desse momento, nasceu entre nós uma amizade indissolúvel. Fiz esta conferência e liguei-me, também, a muitos dos seus amigos de “O Tempo e o Modo”, como Helena Vaz da Silva, uma mulher maravilhosa, além de seu marido Alberto, do João Bénard da Costa e do Pedro Tamen, todos, pessoas notáveis.
Voltei várias vezes a Portugal e a relação com o António tornou-se cada vez mais profunda. É uma das maiores amizades da minha vida. Estive com ele na sua casa de campo. Uma destas visitas foi a seguir à minha estadia na Califórnia, nos anos 70, e lembro-me como foi entusiasmante participar com ele na sua luta pela democracia em Portugal.
O paradoxo da Revolução dos Cravos foi que, normalmente, os militares fazem golpes de Estado para subjugar. Em Portugal, de uma forma única e excecional, foram os militares colonialistas que fizeram o golpe de Estado democrático que derrubou o sucessor da ditadura de Salazar, Marcelo Caetano. O próprio António ficou surpreendido com este golpe mas, claro está, depois ficou muito contente. E eu tive a oportunidade de participar nesses dias maravilhosos de libertação, de euforia.
Continuámos a ver-nos até ao momento em que percebi que ele se sentia muito cansado. Ainda pude vê-lo pouco tempo antes da sua morte, em 2008. Em síntese, direi que António Alçada Baptista é uma figura histórica porque numa época de silêncio total, a revista O Tempo e o Modo e a sua ação foram uma afirmação de liberdade.
Foi o António que me apresentou a Mário Soares que estava exilado em Paris. Levou-o a minha casa e estivemos várias vezes juntos antes dos grandes acontecimentos. Lembro-me de um episódio curioso que se passou no caso “República”, num momento em que houve em Portugal uma ameaça de ditadura, uma espécie de revolução popular com o apoio de uma parte dos militares. O Observateur publicou um grande artigo em que se afirmava – como à época também se dizia no Le Monde – que, em Portugal, o importante era o pão e não a liberdade. Eu escrevi um artigo sobre este caso mostrando que aqui o importante era a liberdade e não o pão. O que reconfortou muito Mário Soares. Esta amizade também só extinguiu com o seu fim.
E tudo isto está ligado. António, graças a quem pude conhecer Mário Soares, graças a quem pude intervir num momento importante da revolução portuguesa, graças a quem me mantenho, em permanência, ligado a Portugal».
Este testemunho foi dado, de um modo emocionado, a Ana Barbosa em Marraquexe, com a preocupação que pudesse ficar registado como sinal de homenagem. De facto para Edgar Morin não apenas é importante destacar o caso singular da revolução portuguesa, como também evidenciar o papel desempenhado por Mário Soares na salvaguarda em Portugal de um Estado de Direito, baseado nos direitos fundamentais e na dignidade humana, numa palavra, num Democracia humanista, com o primado de instituições civis legitimadas pelo voto e respeitadoras do exercício de uma cidadania livre e responsável, e com instituições participadas pelos cidadãos e mediadoras em nome do bem comum. A demonstrar tão grande admiração, Edgar Morin sentiu profundamente o falecimento de Mário Soares, como sentira antes as perdas de Helena Vaz da Silva e de António Alçada Baptista. Foi como se uma parte decisiva do que o ligava a Portugal se tivesse perdido para sempre, não sem que tivesse permanecido a profunda ligação à democracia portuguesa, como exemplo moderno uma cidadania ativa, ciente da exigência da permanência de instituições legítimas.
A lembrança de Edgar é muito sentida e nota-se especialmente quando homenageou Helena e Alberto Vaz da Silva:
«No decorrer dos anos 69 ou 70, descobri o esplendor de Lisboa e, ao mesmo tempo, o esplendor de maravilhosas amizades. Tinha sido convidado por António Alçada Baptista, que animava a revista “O Tempo e o Modo”, rodeado de uma plêiade de espíritos jovens apaixonados por liberdade e por justiça em pleno centro da ditadura salazarista. Entre esses amigos, ligou-me à Helena e ao Alberto um especial entusiasmo. Gostava profundamente de ambos. Ela, com o seu alegre dinamismo, a sua luminosa vitalidade; ele, com a sua reserva, a sua contensão, a sua sabedoria púdica. Nascidos e criados num mundo de tradições, tinham-se emancipado dele, fazendo em alguns anos o itinerário de três gerações: eu acabava de chegar da Califórnia e eles já estavam parcialmente californizados, ainda que conservando a sua lusitaneidade interior. Alberto era advogado e eu nunca soube dessa sua profissão. O que nos ligou foi o seu profundo sentido do mistério da vida, e lembro-me de uma longa noite em que, enquanto a minha mulher falava com a Helena, nós ficámos os dois, com o Alberto a fazer-me o horóscopo com um cuidado meticuloso: ele revelou-me a mim próprio traços da minha personalidade que nunca tinham aflorado à minha consciência. Qualquer coisa de comum nos unia um ao outro. Uma noite inteira nos ligou fraternalmente e esse sentimento fraterno perdurou. Voltei muitas vezes a Lisboa durante os anos 70, e tive a sorte de testemunhar a revolução dos cravos, momento de êxtase na história portuguesa que, como todos os grandes êxtases da História, nos marcou para sempre com a sua poesia, iluminadora e fugitiva, antes que o mundo volte a cair na prosa. Voltei nos anos seguintes, mas consagrei-me depois à América Latina, especialmente ao Brasil, filho de Portugal. Soube, com desgosto, da morte da Helena em 2002, mas não tive conhecimento da do Alberto e só mais tarde a notícia chegou até mim. Tal como o derradeiro brilho duma estrela morta há milhões de anos-luz que nos atinge com toda a sua intensidade muito mais tarde, assim me marcou a morte de Alberto.Direi do Alberto que possuía uma presença poética. Emanava dele uma aura de gravidade sorridente, de bonomia, de doçura extrema. Ser inesquecível, é por mim inesquecido e lamento por razões de última hora não poder estar fisicamente presente na homenagem que lhe é prestada».
Edgar Morin
29 de novembro de 2016


