A Vida dos Livros

De 15 a 21 de janeiro de 2018.

«Lisboa Antiga» de Júlio de Castilho é uma preciosidade da olissipografia. Aí podemos encontrar dois núcleos fundamentais – Bairro Alto (4 volumes) e Bairros Orientais (12 volumes), além do volume dedicado à Ribeira de Lisboa.

A FUNDAÇÃO DA OLISSIPOGRAFIA

Júlio de Castilho (1840-1919) era filho de António Feliciano de Castilho, sendo diplomado com o Curso Superior de Letras. Recebeu de seu pai o título de visconde de Castilho, tendo tido, ao longo da vida, uma intensa atividade de memorialista, historiador, jornalista e bibliografo. Exerceu fugazmente funções políticas como governador civil do distrito da Horta (1877-78) e foi primeiro-oficial da Biblioteca Nacional. A vasta obra sobre a história da cidade de Lisboa é, ainda hoje, de significativa valia, tendo sido reeditada e enriquecida pela intervenção de olissipógrafos do século XX, como Gustavo de Matos Sequeira, Augusto Vieira da Silva e Pastor de Macedo. Se Norberto de Araújo foi um excecional divulgador da história de Lisboa, Castilho foi indubitavelmente não só o verdadeiro fundador da olissipografia, mas também um dos seus mais fecundos estudiosos e cultores. No dizer de Fernando Castelo Branco as três obras fundamentais de Castilho sobre Lisboa constituem “livros com notáveis méritos historiográficos e também literários, e dessa feliz conjugação resultam os quadros de evocação e de recriação que Fernandes Costa assinalou como um dos atributos mais relevantes de Júlio de Castilho… (…). Mas, muito principalmente, há a considerar que tendo sido um pioneiro, J.C. traçou uma obra que continua válida na sua maior parte, dando-nos múltiplos informes sobre a história de Lisboa, os seus edifícios, gentes e instituições. Escrita há já tão dilatadas décadas, continua a ser útil ao investigador, continua a ser uma leitura não apenas agradável, mas positivamente instrutiva para os curiosos do passado”. Discípulo de Herculano, nota-se na obra a influência da nova historiografia iniciada pelo mestre, tendo Júlio de Castilho iniciado as suas investigações e estudos em 1878. E a dado passo lemos na descrição do cerco de 1147, nos Bairros Orientais: “tenho a certeza de que o grande Herculano, se pudesse ouvir-me não levaria a mal, antes aplaudiria a liberdade que tomei; sinto que é mais um preito no seu indiscutível merecimento. De mais a mais: isto não é em mim pelejar com um morto. Herculano não morreu; para a admiração está vivo em todos os cultores de letras; para a veneração está vivo em todos os portugueses”.

O EXEMPLO DE SANTA CATARINA

Em complemento do que na última crónica falámos sobre as igrejas das portas de Santa Catarina damos hoje algumas referências de Júlio de Castilho sobre as igrejas do Loreto e da Encarnação, o que certamente constituirá uma ilustração das qualidades e do valor da obra de Júlio de Castilho, mas também um enriquecimento sobre o conhecimento dessa Lisboa em que continuamos a peregrinar. Falando da igreja do Loreto, refira-se que a mesma foi destruída pelo grande terramoto, descrevendo-a um viajante estrangeiro deste modo: “a feitoria italiana possui em Lisboa uma formosa igreja, há pouco acabada de reconstruir; é da invocação de Nossa Senhora do Loreto. Serve de paróquia. Ali celebram-se pomposamente os ofícios divinos. Este templo é dos mais concorridos pelos elegantes e pelas elegantes da capital”. Na frontaria, os dois querubins que seguram as Armas Pontifícias eram atribuídos a Canova, segundo teria sido comunicado ao Conde Raczynski, grande estudioso da nossa história da arte. Acontece, porém, que o próprio Raczynski refere outro testemunho, transmitido a Machado de Castro, que os anjos seriam obra de Bernini. Mas, para adensar o mistério, ainda é aventada a hipótese de essas figuras serem de Borromino… Numa palavra, há informações contraditórias e não existem provas seguras da verdadeira autoria… A igreja do Loreto não foi totalmente destruída, por isso Júlio de Castilho diz que, tendo Bernini morrido em 1680, poderiam os anjos estar lá anteriormente – tendo havido importantes melhoramentos no século XVII. Aliás, as mais recentes investigações revelam a hipótese de ter havido telas de Ticiano em Lisboa, no Loreto, o que confirma a qualidade das obras de arte do templo. Quanto a Canova, mesmo muito jovem, não há provas. As estátuas de S. Pedro e S. Paulo atribui-as Cirilo Wolkmar Machado a Fancé, um escultor francês. Lembre-se que a comunidade italiana adquiriu a antiga ermida de Santo António em 1518, alterando o orago para Nossa Senhora do Loreto, invocando um milagre do século XIII, segundo o qual a casa da Virgem Maria em Nazaré teria aparecido na Dalmácia e depois em Itália (Ancona) na propriedade de uma senhora de nome Laureta, onde hoje se encontra uma imponente catedral… O autor conta a história e refere ainda a singular representação de Nossa Senhora do Loreto que se encontra no cimo da fachada – “escondendo os braços e envolta num revestimento adornado de joias, pouco artístico e sensabor”…

E A ENCARNAÇÃO?

Depois do Loreto, atravessemos o largo e cheguemos à Encarnação, filha da primeira, e tardiamente instalada, mas graças ao legado de D. Elvira Maria de Vilhena (1627-1718), Condessa de Pontével, dama da corte de D. Catarina de Bragança, Rainha de Inglaterra. A Condessa decidiu edificar uma sede condigna da paróquia da Encarnação, “em chão que aí possuía na vizinhança junto ao muro da Cidade”. E “requereu à Câmara licença para se demolir a torre e parte do muro da Cidade, em baixo, junto à ermida de Nossa Senhora do Alecrim, para alargamento do chão em que se edificava a igreja da Encarnação”. Não foi fácil a concretização. A colossal porta de Santa Catarina demorou a derrubar. Só em 1708 o novo templo foi sagrado. O terramoto não destruiria a igreja, mas o fogo causou-lhe algum estrago que foi lentamente reparado sob a coordenação do arquiteto Manuel Caetano de Sousa. Só 29 anos depois do terramoto voltou o culto na igreja. A frontaria ficou, porém, dezenas de anos por acabar. Só em 1867 viria a ser aprovado o plano de conclusão, que corresponde ao que hoje conhecemos… E Júlio de Castilho elogia especialmente, pelo seu equilíbrio e beleza, o conjunto da autoria de Machado de Castro representando no altar-mor Nossa Senhora da Encarnação. Em suma Castilho cultiva bem a memória e diz, a propósito da demolição dos casebres do Loreto, atrás do palácio Marialva: “Na ordem moral, esquecer é arrasar lanços inteiros da existência. Há entes infelizes, para quem viver é esquecer. Não os invejo, não! Recordar é reviver”… Eis o que não esquece…   

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

Subscreva a nossa newsletter