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Coordenadores do Ano Europeu em Bruxelas

Teve lugar em Bruxelas nos dias 6 e 7 de setembro a segunda reunião dos Coordenadores Nacionais do Ano Europeu do Património Cultural (2018).

Foram definidos os elementos fundamentais do programa a desenvolver ao longo do ano, tornando-se indispensável a mobilização da sociedade civil.

A representação portuguesa foi assegurada por Guilherme d’Oliveira Martins, que publicou no jornal Público um texto alusivo à iniciativa, que a seguir transcrevemos.

PATRIMÓNIO CULTURAL E FUTURO…

O debate europeu atravessa um momento especialmente difícil e incerto. Persistem os efeitos da crise financeira, que evoluem lentamente Há sinais de persistência de uma doença crónica, que ameaça tornar a União Europeia irrelevante e subalterna num mundo de polaridades difusas e de muitas incertezas e perigos – desde a crescente influência das novas potências asiáticas à incontrolável situação do Médio Oriente, passando pela irracionalidade do terror e pela ausência de uma verdadeira capacidade para o diálogo entre culturas. Falta vontade política partilhada, capaz de responder a uma equação de pelo menos três incógnitas: Como dar aos cidadãos voz ativa na definição dos objetivos comuns através de instituições mediadoras eficazes? Como ligar a política e a economia, assegurando um papel ativo da União Europeia no equilíbrio e regulação da cena internacional? Como garantir o desenvolvimento sustentável, baseado no conhecimento, na aprendizagem, na inovação, na coesão e na qualidade de vida?

Eis por que razão a Cultura assume uma importância decisiva, já que a sustentabilidade não pode resumir-se nem à mera gestão dos recursos materiais, nem aos temas ambientais. Importa considerar o valor da memória, da aprendizagem e da capacidade criadora. Ao falar de Cultura, estamos a ligar a fidelidade à memória, o respeito pela herança recebida das gerações passadas à Educação e à Ciência. Veja-se o que se passa relativamente à caixa de Pandora que se chama «Brexit». Ao contrário do que muitos disseram após a decisão do referendo – os efeitos duradouros dessa anunciada saída não têm apenas a ver com câmbios, inflação, crescimento económico ou autonomia, mas fundamentalmente com o enfraquecimento europeu, com perda de coesão, com a desvalorização do conhecimento, com a prevalência dos egoísmos nacionais e com a emergência de conflitos desregulados. Todos esses sinais estão a ser sentidos, com consequências negativas para todos – e o certo é que a incerteza norte-americana não facilita essa evolução.

Perante este pano de fundo, devemos aproveitar a decisão da União Europeia de adotar 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural. Não se trata apenas um gesto de boas intenções – mas da demonstração da importância das raízes históricas e culturais; da necessidade de proteger e salvaguardar o património comum; da importância transversal e estratégica das políticas públicas ligadas à Educação, à Formação e à Ciência, bem como do entendimento de que só a proteção do património cultural, no contexto de uma identidade aberta e plural, e a sua ligação à qualidade da criação contemporânea podem corresponder a uma visão integrada do desenvolvimento, capaz de preservar uma cultura de paz.

Não é verdade que Jean Monnet tenha dito alguma vez que se tivesse de recomeçar a construção europeia teria partido da cultura. De facto, a lógica de uma solidariedade funcional exige a diversidade cultural – que, na fórmula de Jacques Delors, se deve associar às causas da paz e da segurança e do desenvolvimento sustentável. Isto não significa, porém, que Monnet ou Schuman desvalorizassem a cultura. Consideravam-na como denominador comum de valores, como fonte da liberdade, da igualdade e da solidariedade e como pressuposto do respeito mútuo e da dignidade humana. A política, a economia e a cultura articulam-se, assim, na defesa do bem comum – ou seja, na procura de interesses vitais comuns que contribuam para a paz e o desenvolvimento. Daí que a sustentabilidade deva ser considerada através do cuidado com a história e com a equidade entre gerações – preservando o património cultural e protegendo a natureza do esgotamento dos recursos…

O objetivo do Ano Europeu do Património Cultural – 2018 é sensibilizar para a história e os valores europeus e reforçar o sentimento da identidade europeia – não como identidade fechada, mas como realidade aberta e multifacetada, ao encontro de outras culturas. De facto, os desafios que o património cultural enfrenta e que têm impacto na sociedade contemporânea envolvem desde a transição para a era digital até à pressão ambiental e demográfica, sem esquecer a prevenção e o combate do tráfico ilícito de bens culturais. Estamos a falar de monumentos, de sítios, de objetos com valor histórico, de acervos de museus, bibliotecas e arquivos, de tradições, de referências. Reportamo-nos à memória viva, como a língua ou a ciência. Mas, fundamentalmente, tratamos de conhecimentos, de cultura e de humanidade… Ter memória é respeitarmo-nos, é estudar a História e conhecer as raízes. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono, é conhecer, estudar, investigar, proteger e conservar. Mas trata-se ainda de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, de realçar o contributo económico do património cultural para os setores criativos e para o desenvolvimento e de salientar o papel do património cultural nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação e à recuperação de património destruído.

Trata-se de seguir e aprofundar o que está consagrado na Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada em Faro a 27 de outubro de 2005 (e entrada em vigor a 1 de junho de 2011), cuja preocupação fundamental foi assumir a noção crucial de património cultural comum e de construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo o património construído e material, o património imaterial e a criação contemporânea. As políticas públicas de cultura devem, assim, começar pelo cuidado da herança e da memória. Mas o património cultural não se refere apenas ao passado, e sim à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que é herança comum. Como compreenderemos a Europa sem o diálogo entre a tradição e o progresso, sem a compreensão da história, desde as raízes da antiguidade, dos judeus, cristãos e muçulmanos, da civilização greco-latina até à modernidade? Esse entendimento não pode, porém, ser confundido com a dissolução de referências ou com o puro relativismo (que é, tantas vezes, antecâmara paradoxal do absolutismo). Urge compreender, afinal, que o que tem mais valor é o que não tem preço. E isso é difícil de entender quando há quem pense que tudo se pode comprar ou vender…

Guilherme d’Oliveira Martins
Administrador Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian,
coordenador nacional do Ano Europeu do Património Cultural
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