A Vida dos Livros

De 3 a 9 de outubro de 2016.

“Democracia e Utopia: Reflexões” de António Barbosa de Melo (Porto, 1980) é uma oportunidade de eleição para compreendermos melhor as raízes humanistas da democracia para um português, comprometido cívica e politicamente, na construção do constitucionalismo no século XX.


O COMPROMISSO POLÍTICO

Numa das últimas vezes que nos encontrámos, com vagar para refletir sobre o tempo e o mundo, no renovado Museu Machado de Castro, em Coimbra, pudemos sentir as raízes que sempre nos aproximaram no campo das ideias e dos valores. Perante mil perplexidades e incertezas, abundámos na ideia de que a dignidade humana é a grande referência, com todas as dúvidas, avanços e recuos da história. Temos dificuldade em saber o que é mais importante, se a vivência dos momentos exaltantes, se a compreensão dos erros e das fragilidades da vida. Afinal, como nos ensinaram Jean Lacroix ou Emmanuel Mounier, tudo conflui na compreensão da força e das fragilidades do género humano… Falo de António Barbosa de Melo, que fui reencontrando ao longo da vida, sempre com o redobrado gosto de uma amizade reforçada… E recordou-me a afirmação de Paulo Freire: «Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo». Nesta afirmação está porventura a chave do mistério da aprendizagem – e essa preocupação tinha a ver, no fundo, com as grandes preocupações que sempre foram as suas: compreender a democracia como uma construção baseada na liberdade e na responsabilidade, nas diferenças, nas complementaridades, na coexistência de poderes que se limitam entre si e na descentralização, baseada nos direitos e liberdades fundamentais, na autonomia e na responsabilidade, tendo como fundamento a eminente dignidade humana. Leia-se «Democracia e Utopia» e compreenda-se a aceitação da imperfeição e do carácter incompleto das construções políticas – sem renúncia a um horizonte de desafio e de exigência da utopia e da ucronia. Nesse sentido, Barbosa de Melo assumia o essencial da mensagem de Tomás Morus. Longe da tentação das sociedades perfeitas e completas, o referencial de Morus era a capacidade de a humanidade se aperfeiçoar. Não era a profecia, não era Savonarola, não era a sociedade acabada e virtuosa que importariam, mas o respeito pelas pessoas, que deveria ser preservado… E se o século XX nos reservou a ilusão das soluções supostamente racionais, que geraram as idolatrias e os totalitarismos, a verdade é que a lição de Popper estava bem presente no percurso seguro, mas propositadamente crítico e interrogativo, de quem recordamos hoje. E assim se compreende a invocação de Paulo Freire. No fundo, do que se trata é de entender a complexidade da vida humana – que recusa a autossuficiência, os caminhos pré-definidos, as certezas rígidas. Popper advogava as sociedades abertas e a preservação pacífica da multiplicidade, enquanto Edgar Morin indica a força da incerteza e da complexidade – num apelo comum à aprendizagem e ao sentido crítico…

EM DEFESA DA CONSTITUIÇÃO

Falámos nesse dia, como era costume, de tudo, com que entusiasmo. Da política ao mundo das ideias, passando pela educação (seu ponto de honra) – e pela sua preocupação permanente no sentido de encontrar denominadores comuns estáveis e duráveis, aptos a pôr a educação, a ciência e a cultura no centro da sociedade e do bem comum. Defendia, por isso, a ideia de um serviço público da educação, que se não confundia com serviço da Estado. As responsabilidades da República obrigam a que o dinheiro dos contribuintes seja posto ao serviço de todos, para assegurar que ninguém possa ficar de fora por razões económicas e sociais, e para garantir que as iniciativas da sociedade se completam sem disparidades ou injustiças… Nunca esqueceremos a lapidar declaração de voto aquando da aprovação da Constituição da República. Como Jorge Miranda, o outro grande artífice da Lei Fundamental, disse, Barbosa de Melo defendeu o voto favorável, perante a hipótese levantada por Francisco Sá Carneiro de o PPD se abster. Essa posição prevaleceu, como acontecera na fundação do Partido, quando o grupo de Coimbra, por sua influência, pôs a tónica numa orientação socializante. E temos de lembrar o papel histórico que desempenhou na consagração legal do sistema eleitoral proporcional, segundo o método de Hondt, na afirmação da dignidade da pessoa humana nos princípios fundamentais, na ideia de uma comissão constitucional que fosse um supremo tribunal de fiscalização concreta da constitucionalidade (que a revisão de 1982 consolidaria no Tribunal Constitucional). Não esqueço a emoção com que ouvimos as suas palavras, nesse dia 2 de abril de 1976. «Não abraçar esta Constituição equivaleria para nós a um pecado capital contra o universo ético-político em que, indefetivelmente, nos movemos. Um dos axiomas mais caros ao nosso ideário reside na crença inabalável na democracia política. Isto para nós significa que a verdade possível em política se há de alcançar, e só pode alcançar-se, pela permanente conjugação das pequeninas verdades de cada um. Será sempre intolerável que uma parte do povo queira ser todo o povo. Para nós, uma pessoa, um partido, uma classe social, um aglomerado territorial, jamais poderão legitimamente evocar o direito de apreciar e julgar a história; ou de fazer a política de um povo inteiro. No momento em que alguém disser: “o povo é meu, a história é minha, o Estado sou eu”, como um predestinado ou eleito que tivesse comido sozinho o fruto da árvore proibida, nesse momento a democracia morrerá. Estamos de alma e coração com todos aqueles que, ao longo da história da libertação humana, souberam ir expulsando os deuses do horizonte da cidade, a lançar, pouco a pouco, as bases para o advento, como diria Vico, da idade dos homens». Na literatura política contemporânea portuguesa este é um dos textos capitais. Aí encontramos um discurso que se mantém vivo, e que hoje subscrevemos consensualmente, como a definição exigente de uma sociedade aberta e livre.

UMA DEMOCRACIA DE VALORES

Lembro como se fosse agora, como nós, os mais jovens, sentimos que esse voto positivo era o melhor contributo para a consagração de uma democracia madura e aberta, livre e justa, autónoma e responsável – pressuposto fundamental para termos uma República moderna. As palavras de Barbosa de Melo foram a melhor e mais legítima interpretação do nosso sentimento. E assim a Constituição de 1976 se integrou na linhagem das Leis Fundamentais da liberdade – 1822, 1838, Ato Adicional de 1852 à Carta Constitucional e 1911. E tivemos os nossos pais fundadores a dialogar com os antigos, como José Estêvão e Almeida Garrett… «Em 25 de abril o povo inteiro, à medida das suas luzes e através dos seus resultados eleitorais, disse até onde queria garantir a cada partido ou formação ideológica a sua influência na elaboração da nova Constituição da República. Se outros tivessem sido os resultados, decerto outra seria a Constituição. Quem formou a roda foi o povo e aí é que os partidos tiveram de dançar. (…) Votámos a Constituição sem qualquer crença fixista sobre a história. Votámo-la com a consciência clara de que este Povo de mais de oito séculos vai retomar, sereno e firme, a sua longa aventura da liberdade».

Guilherme d’Oliveira Martins

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