A Vida dos Livros

De 26 de setembro a 2 de outubro de 2016

Alice Vieira é justamente uma das mais celebradas escritoras dedicadas aos mais jovens, sendo uma autora completa, que divide a sua criatividade pela poesia, romance e ensaio. Ao tratar com cuidado e criatividade temas diversos, desde as narrativas tradicionais ao quotidiano, passando pela invocação histórica – como em «Este Rei que Eu Escolhi», em que a aclamação de D. João I é ocasião para lembrar um acontecimento histórico e apelar à responsabilidade cidadã – torna a leitura e a literatura algo de próximo e apetecível. 

ESCREVER PARA O MOMENTO PRESENTE

Alice Vieira faz da literatura um ato de prazer e de recordação. Lê-la nos diferentes registos, que usa com arte, significa encarar a plasticidade das palavras como um modo de nos permitir uma melhor compreensão da vida. É, de facto, da vida que Alice Vieira trata – e tal nota-se especialmente na escrita multifacetada que pratica. Partindo do quotidiano ou das histórias tracionais, na linha de Adolfo Coelho e Teófilo Braga, procura ligar o sentido cívico e pedagógico. Compreende, assim, que a melhor tradição popular da narrativa visa educar, instruir, lembrar, alertar, suscitar, dar atenção, prevenir, intervir e participar. É preciso compreendermos a origem desse veio de criatividade. Trata-se de preparar a iniciação à vida vivida, com todas as prevenções necessárias. E se o conto popular causa tantas vezes perplexidade, tal deve-se à obrigação pedagógica. É preciso que o tema seja suficientemente impressivo para que os seus destinatários o compreendam. Mas Alice Vieira escreve para os leitores de agora e por isso apresenta os temas e as situações de acordo com o momento atual. Não se trata de fazer recordação histórica, mas compreender o público dos dias de hoje – interessando-o e motivando-o. Quando lemos Esopo ou Fedro, Charles Perrault ou os irmãos Grimm, percebemos que se trata de pegar na tradição para alertar as crianças e os jovens, que se iniciam no mundo, contra todos os perigos que a natureza e os homens nos reservam. E Alice Vieira compreende-o bem ao aproximar as narrativas das preocupações do momento presente… Sem iludir ou escamotear a realidade, a autora dá um sentido positivo às lições que pretende transmitir. E que sentido é esse? O da compreensão de que a literatura, no seu todo, deve constituir-se num espaço com várias entradas, em que o fantástico se une ao real, o maravilhoso ao incerto, o fácil ao difícil… Estou a ouvir o meu avô Mateus, a dizer-nos, num ritmo cadenciado, a lengalenga tradicional – «Corre corre cabacinha / Não vi velha nem velhinha / Nem velhinha nem velhão / Corre corre cabação»… O lobo, o urso e o leão não se entendiam, admirados com o inesperado que se estava a passar… E assim, naquelas três ameaças resumiam-se os males que nos podem ameaçar, enquanto a esperteza da velhinha salvava o que havia a salvar… E, de um modo despretensioso, de quem quase nem se dava conta, podíamos entender que tudo estava em ter respostas inteligentes e em apanhar desprevenidos o lobo, o urso e o leão – considerados símbolos das ameaças do mundo… E foi esse relato antigo que encontrei sem uma ruga no texto de Alice Vieira…

 

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA JUVENIL

Trata-se de assumir a magia serena de uma história edificante, em que a inteligência pode vencer a irracionalidade. A literatura infantil e juvenil tem um papel decisivo na formação das pessoas e das sociedades. Não se trata, porém, de fazer um compartimento fechado ou à parte, mas de utilizar um modo especial de sensibilizar a comunidade para os seus temas fundamentais. A maior parte dos textos da literatura juvenil destinou-se originalmente a todos. As narrativas tradicionais ensinam todos, e apela a que se faça uma transmissão eficaz das mensagens às gerações futuras. Lembramo-nos da fórmula clássica – histórias contadas às crianças e lembradas ao povo… E quando nos dirigimos às crianças recordamos a sociedade no seu conjunto: se os mais jovens são alvo preferencial da pedagogia, todos os outros são os que estão cientes de que o saber não ocupa lugar e de que o aprender é a chave do avanço histórico. Daí a dificuldade do género literário, uma vez que o público jovem é exigente e curioso – e Alice Vieira bem o compreende, praticando com cuidado a regra da identificação, tomando o lugar de um dos seus leitores – com uma escrita que é de facto para todos. E se falo de identificação é para salientar o mimetismo da aprendizagem que se estabelece entre a escritora e os seus jovens leitores. Um mimetismo que tem a ver com os temas, com a forma de os apresentar, com a clareza, com a proximidade e com a escolha das palavras. Há uma especial afetuosidade que perpassa nesta escrita e que a torna acolhedora e um meio de incentivo à leitura – tornando o sentido pedagógico eficaz, mas também exigente, pelo rigor na construção das frases e da narrativa. A obra fala por si. Do jornalismo à poesia, passando pelo romance, presenciamos um culto e um domínio seguro da língua portuguesa – que, naturalmente, se projeta no género em que mais se celebriza. Recebeu, por isso, os Prémios Gulbenkian pelo conjunto da sua obra e por «Este Rei que eu Escolhi». O êxito junto dos mais jovens é corolário de uma exemplar escolha de temas e pela mestria inequívoca na escrita.

 

O INCENTIVO À LEITURA

A melhor homenagem que podemos fazer a Alice Vieira é salientar o seu papel fundamental no incentivo à leitura, na melhor tradição de grandes escritores que escreveram para crianças e para todos, usando temas relevantes – desde a História às tradições, dos contos tradicionais à relação amigável com a natureza, desde a solidariedade à responsabilidade cívica. No fundo, incentivar a leitura é dar à cultura uma força criadora especial. É pôr em contacto as diferentes gerações. É ligar os vários momentos de uma história viva. É considerar a aprendizagem como o fator do desenvolvimento por excelência. É fazer dialogar os poetas e os escritores das diferentes gerações. É ir ao encontro do povo e da sua extraordinária capacidade para tornar vivos os valores fundamentais, como a dignidade humana. Alice Vieira faz da literatura um ato de prazer e de recordação.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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