A Vida dos Livros

De 2 a 8 de maio de 2016.

Amadeo de Souza-Cardoso regressa a Paris em todo o esplendor da sua obra. O catálogo da exposição do Grand Palais mostra-nos o amigo de Amedeo Mondigliani como ninguém antes o viu na capital francesa – com uma originalidade que nos deixa assombrados.

CONSULTE AQUI O PROGRAMA DA VIAGEM A PARIS – 15 A 17 DE JULHO

DE NOVO EM PARIS

Regressar a Paris é sempre uma festa e não falo de uma referência pessoal, mas de um regresso histórico, de alguém que viveu em Paris um dos momentos fundamentais da sua vida e da criação artística. É Amadeo de Souza Cardoso que refiro e o seu regresso em glória ao mítico Grand Palais, que nos recorda a Exposição Universal de 1900. E a verdade é que hoje é um momento muito especial para esta Exposição, quando a geração de «Orpheu», a começar com Fernando Pessoa, se tornou grande referência europeia. Amadeo não tem, porém, ainda a aura do «Livro do Desassossego», mas tem uma singularidade que reforça a consistência da encruzilhada criadora que viveu. O certo é que agora regressado numa mostra referencial ao Grand Palais podemos contar, mais uma vez graças à Fundação Calouste Gulbenkian, com uma exposição sublime, em que o pintor se revela como um dos nomes maiores do seu tempo. E se digo mais uma vez graças à Fundação, é porque, antes de tudo, foi a compra da coleção, quando o Estado Português havia recusado nos anos cinquenta adquiri-la por incompreensíveis razões, que foi possível salvá-la como maravilhoso conjunto, que a história tem valorizado em todo o seu esplendor. São 150 obras de Amadeo e dos seus amigos Mondigliani, Brancusi, os Delaunays… E o certo é que se os heterónimos de Fernando Pessoa nos dão a multiplicação de uma personalidade criadora, que interpretou como ninguém os novos tempos de uma modernidade contraditória e inesgotável, foi a capacidade de Amadeo de Souza-Cardoso dar um sentido universal a uma obra multifacetada, mas produzida num tempo relativamente curto, impressiva e assente em raízes fecundas, que revelam uma espécie de recriação ou reconstrução da realidade e do mundo. Na revista «Portugal Futurista», Álvaro de Campos coincide com Amadeo – «só tem direito a exprimir o que sente em arte, o indivíduo que sente por vários». Almada Negreiros disse que Amadeo «é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX» – e, maravilhado, deu nota de como partiu de uma identidade próxima para a tornar global – «toda a arte reflete o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as próprias cores. Foram estas cores que teve para começar a sua mensagem de poeta».

NO GRAND PALAIS

O Grand Palais invoca a Exposição Universal de Paris de 1900 e faz-nos lembrar Walter Benjamin a dizer que «as Exposições são as únicas festas verdadeiramente modernas», como antes Baudelaire falara da «embriaguez religiosa das grandes cidades». Esse pavilhão emblemático é dos poucos (como a Torre Eiffel e o Trocadéro) que se manteve depois das Exposições de que fizeram parte. A presença de Amadeo nesse lugar ilustra o que ainda o autor de «Fleurs du Mal» disse (em 1855) da modernidade: «é o transitório, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é eterna e imutável». O Grand Palais representa o ecletismo do fim do século, desde as colunas jónicas à arquitetura do ferro, num conjunto que envolve o Petit Palais e a Ponte Alexandre III. O novo século marcava pela novidade, pela técnica, pelo exotismo e pelo diferente. Amadeo no Grand Palais funciona como um símbolo (como foi o caso de Picasso-Mania, um grande diálogo de influências há pouco terminado em torno do célebre artista). Dir-se-ia que são as duas metades definidas por Baudelaire que se encontram neste artista que soube lidar com o tempo – ligando a herança e a necessária transformação pela arte. Numa célebre entrevista ao jornal «O Dia» Amadeo Souza-Cardoso proclamou solenemente: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram, Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola». A insatisfação é a marca dominante ao longo do seu percurso criador. José-Augusto França fala da impaciência, da angústia e de uma criação expressiva e colérica, «misturando na sua definição uma grande liberdade plástica e uma grande necessidade de dar força e imagens, violentas ou irrisórias, a uma ideia do próprio mundo que o pintor pressentia para além de uma aldeia que o destino lhe dera».

O SOL INTENSO DE PORTUGAL

Em 1908, no ano dramático em que Unamuno escreveu sobre Portugal, a presença invisível de Amadeo estava próxima de Pascoaes e Manuel Laranjeira. Hoje, podemos ligar as referências – já que o jovem pintor pôde projetar com pujança o que tanto interessava ao mestre de «Sentimento Trágico da Vida». O artista interpreta o que é genuíno e diferente na terra que conhece. Isso faz parte integrante da sua existência como artista que recusa a mediocridade que vê em volta. Amadeo regressa a Paris e escreve à mãe: «Gostei muito de estar em Manhufe. Fazia um sol intenso. A montanha inundava-se de luz. E que grandiosidade aquelas montanhas! Fiz lá uma oito manchas e estava progredindo bastante, começava a interpretar melhor a natureza. Agora estou em Paris, não imagina a tristeza que me fez ontem esta atmosfera parda, este sol anémico. O que me valeu foi encontrar o Vianna e levamos o dia a falar do Portugal prodigioso, país supremo para artistas. É pena que não haja um forte meio de arte». Sente-se aqui a força original da sua obra. Como Almada Negreiros disse: «o seu rincão natal são as próprias cores». Foram estas as que teve «para começar a sua mensagem de poeta». Das raízes da terra e da luz, do «Portugal prodigioso» parte-se para a procura das mudanças necessárias. Por estes dias passa o centenário da morte de Mário de Sá-Carneiro, e o acontecimento do Grand-Palais associa-se também naturalmente à efeméride. Lembramo-nos da colaboração de Amadeo no número 3, que nunca veria a luz do dia, de «Orpheu». E, se se fala de Sá-Carneiro, recordamos José Régio a considerar a poesia e a personalidade deste como uma mediação para a melhor compreensão da primeira geração modernista. Ora, no campo da criação artística, Amadeo de Souza-Cardoso também foi, à sua maneira, um mediador, por insuscetível de ser encerrado num rótulo ou numa escola, podendo ligar fundamentos, raízes e modernidade. E se muitas vezes houve quem compreendesse mal o lugar de Amadeo na história da nossa Arte, por razões, aliás, contraditórias, tal deveu-se à independência, à originalidade e à insatisfação do artista. Está em causa a ligação entre Manhufe e Paris, entre a proximidade poética a Teixeira de Pascoaes e à Renascença Portuguesa e ponte para a força inovadora de «Orpheu». Almada Negreiros reconhecerá, assim, nele um sinal marcante. Mas, como diz Helena de Freitas, Amadeo é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estrilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas»…  

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Subscreva a nossa newsletter