A Vida dos Livros

De 18 a 24 de janeiro de 2016

Vergílio Ferreira (1916-1996) completa dentro de muito poucos dias (28 de janeiro) o centenário do nascimento, merecendo referência como um dos autores mais influentes do século XX.

UM LUGAR MUITO ESPECIAL…

Vergílio Ferreira tem uma importância para a cultura portuguesa do século XX, e em especial para as novas gerações do pós-guerra, que ultrapassa em muito a ideia de estarmos perante um escritor entre outros. É uma figura marcante – pela singularidade e pela força criativa. Eduardo Lourenço disse, por isso, com especial pertinência que «a sua obra de romancista e de ensaísta é a única em que, através de mil ambiguidades e dificuldades, se respira a atmosfera de um combate». De facto, o romancista e o pensador souberam assumir na sua obra as tendências fundamentais do seu tempo, sempre com um apurado sentido crítico, numa significativa lógica de independência e singularidade – em busca de uma vocação própria, sem esquecer as profundas mudanças que o mundo ia apresentando. De Hegel a Nietzsche, de Kierkegaard a Sartre, até Camus o autor de «Aparição» vive um século trágico, pleno de confrontos entre diversas leituras dogmáticas da sociedade e do tempo, que o intelectual e o homem recusam. Vergílio Ferreira quis, assim, sempre assumir o seu próprio caminho – primeiro tratando dos dramas sociais, que reclamariam uma sociedade nova (como em «Vagão J», 1946) e, a pouco-e-pouco, embrenhando-se nos mistérios da existência – que, desde sempre foram aflorando na interrogação das palavras, das pessoas e das complexas relações sociais. E assim foi consolidando a sua afirmação num romance de feição reflexiva e existencial – em que se sentem as leituras de Jean-Paul Sartre, mas que o tempo foi aproximando da força criadora e crítica de Albert Camus. No pórtico de «Aparição» (1959), o romance que constitui um marco na literatura portuguesa contemporânea, ao falar da «casa enorme deserta» onde se encontra, acrescenta, emblematicamente: «Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras».

COMO MUDAR?
Desde «Mudança» (1949), sentimos a presença de personagens marcadas pela angústia, pela tensão entre assumir a relação consigo próprio e com os outros. E deste modo a reflexão filosófica funde-se com a criação literária – o eu e o outro encontram-se e descobrem o sentido da vida, em choque com a «inverosimilhança da morte». Como o escritor dirá em «Conta-Corrente»: «o único valor possível, ou seja, o único mito que não se sabe o que é, é o próprio homem». Os temas fundamentais têm, no fundo, a ver com o choque perante a realidade da doença, da solidão, da morte, da decadência, da crueza dos dramas da existência. E assim Vergílio Ferreira transmite-nos o sentimento contraditório do desejo em choque com a realidade: «Escrever? «Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E, para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão» («Pensar», 1992). «Sinto mais nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim». Mas que é esta «aparição existencial»? «A revelação de si a si próprio». E é isto que se sente não apenas em «Aparição», mas em toda a obra do romancista. Alberto Soares apenas consegue proteger-se, sobrepondo a relação com a Serra à fragilidade do ser humano… Angústia, fragilidade – eis o que domina a reflexão do autor. No fundo (como dizia Eduardo Lourenço): há uma permanente procura, uma agonia, no sentido etimológico, de luta interior – e é essa luta que dá uma tónica única à prosa inconfundível.

QUE DESTINO HUMANO?
Como afirmou Samuel Dimas, a propósito da corrente europeia que tanto influenciou Vergílio Ferreira (de Malraux a Camus): «o mais alto destino do homem é assumir o seu destino, o qual inclui a questão da vida e da morte e antes dele ou em consequência dele a questão da existência de Deus»… Esta, no fundo, é a preocupação fundamental assumida… A Vergílio Ferreira perguntaram um dia qual dos seus livros proferiria. O autor hesitou e avançou: «Depende! Em todo o caso, se retorno ao «Para Sempre» tenho de ir ter com a Sandra para nele me comprazer. Mas «Alegria Breve» posso abri-lo em qualquer ponto, para sempre me releio em plenitude»… Com efeito, a vasta obra, especialmente a romanesca e ensaística de Vergílio Ferreira, tem uma textura e um alcance inconfundíveis… – correspondendo a uma leitura da realidade histórica que nos rodeia. E poderemos, sobre a obra e o homem, lembrar novamente Eduardo Lourenço, que afirmou, sobre a influência de Camus: «A condição do homem é uma mistura só em raras horas explosiva. Essas explosões são as revoltas, demasiado fáceis se o seu fim fosse sem equívoco a justiça. Mas a justiça e a injustiça têm o mesmo rosto humano e não é fácil distingui-las. (…) E, todavia, isso é necessário para alguns. Mesmo num mundo privado de deuses não abdicam dos valores… Mas como a sua garantia absoluta não existe só, eles mesmos os podem sustentar. O revoltado é justamente esse, privado de transcendência, que está disposto a pagar pelos valores que a sua existência introduz no mundo para se realizar. O seu caminho é solitário e sem consolação. A sua revolta é a sua maneira de existir. É uma exaltação sem medida ou uma tristeza de abismo, ambas injustificáveis. Como na vida»…


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
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