A Vida dos Livros

De 17 a 23 de novembro de 2014.

A exposição que está patente no Museu Bordalo Pinheiro em Lisboa, subordinada ao tema «Menezes Ferreira, Capitão de Artes» é um bom exemplo de iniciativa que recorda um autor injustamente esquecido, que nos coloca perante o debate que teve lugar na sociedade portuguesa sobre a participação na Guerra.

UM HUMORISTA NA GUERRA
O centenário do início da Primeira Guerra Mundial tem suscitado entre nós a realização de diversos eventos, que permitem não só um melhor conhecimento dos acontecimentos históricos, mas também a compreensão da importância da memória no debate político e cultural. Havia uma forte corrente que combatia a entrada no teatro europeu do conflito, ainda que houvesse um apreciável consenso sobre a necessidade da assegurar a defesa de Angola e Moçambique, cuja conquista estava nos objetivos da Alemanha. Aliás, se a presença em África de tropas portuguesas ocorre praticamente desde o início das hostilidades, muito tardiamente é tomada a decisão de intervir (1916), e só no início de 1917 chegará o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português (CEP). E o caricaturista João Guilherme Menezes Ferreira (1889-1936) documenta de um modo relevante, e com apreciável qualidade, a participação portuguesa na Guerra, com múltiplas implicações, dúvidas, angústias e limitações, tantas vezes trágicas.
Menezes Ferreira é um autor pouco lembrado, ainda que para quem tenha tido um intenso contacto, desde muito cedo, como foi o meu caso, com o múltiplo material gráfico da Primeira Guerra e em especial com a produção dos Humoristas portugueses, seja um velho conhecido. Foi, por isso, com um sincero prazer que reencontrei muitas ilustrações já vistas, ao lado de outras totalmente inéditas (sem esquecer a coleção de Emílio Ricón Peres). Trata-se de um caricaturista marcado pelo tempo, que foi sofrendo uma evolução não só pelo contacto e amizade com Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, importante colaborador de seu pai Rafael, mas também pelo conhecimento e influência dos humoristas europeus. Daí a simplificação dos traços que se vai evidenciando, na linha dos humoristas alemães, em especial do jornal «Simplicissimus»… Naturalmente que, ombreando com os melhores, sente-se o amador, que gostava verdadeiramente de ilustrar os acontecimentos e as inesperadas cenas do quotidiano. E é essa capacidade repentista que o singulariza – merecendo maior atenção do que a que lhe tem sido dada. E deve dizer-se que a exposição do Museu Bordalo Pinheiro é oportuna e pedagógica, uma vez que recolhe o testemunho vivido de alguém que esteve nos teatros de guerra e que ilustra o que então teve lugar, num momento especialmente difícil da vida portuguesa. A verdade é que a Guerra, com as suas consequências, foi um dos fatores que enfraqueceu a República.

AO LADO DOS MELHORES

E que encontramos? Antes de mais o movimento dos humoristas que teve influência importante na modernização do panorama artístico português. O I Salão dos Humoristas Portugueses no Grémio Literário nasce em 1912 do impulso de «A Sátira» de Joaquim Guerreiro e segue a tradição de Rafael Bordalo Pinheiro. Havia desenhadores consagrados (como Alfredo Cândido, Alonso, Celso Hermínio e Francisco Valença), mas também jovens com outras talentosas influências – Emmerico Nunes, Christiano Cruz, Almada Negreiros, Jorge Barradas e Canto da Maia. Faltaria referir os ausentes de início, como Stuart de Carvalhaes, Correia Dias (que emigraria para o Brasil) e Leal da Câmara, que tivera justo sucesso em Paris em «L’Assiette au Beurre». Christiano foi certamente o mais dotado, mas teria uma efémera intervenção. Stuart, Emmerico, Barradas e Almada teriam o sucesso conhecido. A Guerra em África leva o Alferes Menezes Ferreira para Angola como Adjunto do Comando do Destacamento, participa e ilustra a dramática batalha de Naulila. E possuímos os seus esboços desse tempo. Regressado à pátria, será dos primeiros a embarcar para a frente europeia, afirmando: «o meu natural bom humor tem-me desviado até hoje – o diabo seja surdo – de todas as ideias pessimistas ou defetistas, que é quase a mesma coisa, que possam abalar a minha firme convicção no rejuvenescimento de Portugal». A vida das trincheiras convidava ao tédio, mas o humorista procura retratar a solidão, os efeitos dos confrontos, as ironias dos «poilus» («un poilu qui passe»), mas sobretudo os pequenos atos de valentia dos soldados. E quando regressa, reconstrói quatro personagens, dois reais (Zé das Frágoas e Milhais, o invocadíssimo soldado Milhões) e dois imaginários (o célebre João Ninguém e Harry Budd). Aí encontramos o testemunho da mágoa e da incompreensão das entidades oficiais e dos civis que não partiram. Lembremo-nos que o golpe de Estado de Sidónio Pais (dezembro de 1917) contribuíra para desguarnecer a frente onde estava o CEP, mandara vir a Lisboa os comandos e atrasara o «roulement», com a terrível consequência do massacre de La Lys (abril de 1918).

A PERSONAGEM DE JOÃO NINGUÉM

«João Ninguém, Soldado da Grande Guerra» é de leitura imprescindível para entender o que se passou… Como afirma Nuno Severiano Teixeira, numa obra muito útil que acaba de sair, («A Crise do Liberalismo, 1890-1930», volume 3 da História Contemporânea de Portugal, ed. Objetiva): «a estratégia intervencionista era a mais segura para alcançar os objetivos de guerra. Mais segura mas também mais difícil, porque exigia melhores condições e maiores meios. Ora, foi nessa avaliação estratégica que a política intervencionista falhou, traída pelo próprio voluntarismo. Os resultados viram-se na Conferência de Paz: Portugal obteve, integralmente, os objetivos coloniais; parcialmente, os económicos; mas falhou rotundamente o objetivo político: a entrada no Conselho Executivo da Sociedade das Nações»… Ora, o testemunho de Menezes Ferreira ilustra isto mesmo – como se vê nos «Sargentos da Revolução», apresentados como uma tropa fandanga, mal preparada, mal equipada e com pouco brio. E é curioso verificar como o humorista, como patriota que era, procura usar da pedagogia cívica para contrariar o contraste entre o empenhamento dos soldados e a desatenção política ao seu empenhamento. Depois de 1919, o artista dedicar-se-á à edição gráfica e à ilustração, por exemplo em «Tropa d’África», de Carlos Selvagem e «Marinheiros de Portugal», de Bernardo Mesquitela, ou à publicação de «A Viagem Maravilhosa de Gago Coutinho e Sacadura Cabral», de «Um Conto de Natal», de «À Luz do Lampadário» e de «As Tradições do Colégio Militar». Democrata e republicano vai sobretudo preocupar-se com a pedagogia cívica, procurando partir da experiência humana da guerra para defender a liberdade e uma visão humanista da vida. A sensibilidade artística e as suas qualidades, do caricaturista e do pintor, manifestam-se sem um caráter profissional e sistemático. Trata-se, pois, no essencial, de uma homenagem oportuna e justa (coordenada pela experiência de João Alpuim Botelho) à tradição da caricatura e à importância do humor na nossa cultura.

Guilherme d’Oliveira Martins

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