A Vida dos Livros

De 15 a 21 de setembro de 2014.

A última jornada da nossa peregrinação à Índia é marcada por uma pequena preciosidade literária que levávamos na bagagem: «Notes on the History and Antiquities of Chaul and Bassain», de J. Gerson da Cunha, editado em Bombaim (Thaker, Vining & Co, 1876).

CIDADES LABORATÓRIO… 
Quem olhasse com a atenção um pequeno memorial junto a uma das entradas laterais da Igreja da Glória, no bairro de Mazagão em Mumbai, verificaria que o mesmo é dedicado a José Gerson da Cunha (1844-1900) e a sua mulher Ana Rita da Gama. Trata-se do autor do pequeno livro que merece a nossa atenção. Natural de Salcete, em Goa, fez a sua formação médica em Bombaim e Londres, Gerson da Cunha era tio do eminente jurista português Professor Luís da Cunha Gonçalves (1875-1956). Ao percorrer o livro, encontramos uma circunstanciada análise geográfica, toponímica, geológica e histórica de Chaul e Baçaim. Mas o interesse da referência tem a ver com a necessidade de compreendermos as razões, os desenvolvimentos, a ascensão e a queda da presença portuguesa na Índia. Chaul e Baçaim são dois exemplos muito significativos que hoje constituem reminiscências da cultura indo-europeia. São sinais que o tempo conservou como que congelados. O caso de Baçaim é eloquente, já que nos deparamos com uma cidade fantasma, que desde o século XVIII existe como um esqueleto urbano, que a nossa imaginação pode humanizar… Se a quadrícula viva de Damão, dentro da fortaleza, nos revela uma cidade que, apesar de tudo, permanece habitada, e com atualizações naturais, as estruturas de Baçaim, dentro da floresta, e de Chaul, totalmente absorvida pela verdura tropical, aberta sobre o Mar Arábico e com o sistema de defesa bem visível, constituem peças de laboratório para entendermos o que seriam cidades paradas no tempo…

ANTES DE OS PORTUGUESES CHEGAREM…

Conhecidas desde a Antiguidade Clássica, em especial pela escola geográfica grega de Ptolomeu, Chaul e Baçaim apresentaram sempre qualidades económicas e estratégicas de grande notoriedade. Segundo Gerson da Cunha, os períodos mais recuados são para os dois casos muito nebulosos, mas parece não haver dúvidas de que nos períodos purânico, hindu autêntico e muçulmano houve um reconhecimento traduzido na proliferação de templos e num apreciável nível cultural certamente devido à circulação económica na região. O período mais interessante na vida das duas posições é, no entanto, indiscutivelmente o português – e o autor aponta a vantagem por os portugueses, apesar das esplendidas oportunidades que tiveram, não terem querido adquirir influência política ou territorial, confiando a sua presença à aquisição de poder marítimo e comercial pelo estabelecimento de feitorias na costa e de pequenas guarnições para a sua defesa. Importa, porém, referir que aquando da chegada dos portugueses à Índia poucas eram as regiões cujos soberanos e classes dominantes não estavam islamizadas, em virtude da grande expansão da influência dos emigrantes persas e árabes no Índico. O que os portugueses designavam genericamente como mouros distinguiam-se em dois grupos: os de terra, radicados nos portos do Mar Arábico e Oceano Índico e os de Meca baseados na Arábia, no Egito, no Iraque e na Pérsia, que dominavam o transporte de longa distância e controlavam o levante mediterrânico. E para esses havia duas rotas: a do mar Vermelho, que ia ao porto de Jeddah, em que a mercadoria era baldeada para os camelos, que a depositavam em Alexandria, onde depois do pagamento de pesadas taxas, as especiarias e outros produtos eram carregados em galés venezianas. A rota alternativa seguia pelo Golfo Pérsico até Baçorá, de onde as caravanas seguiam até Beirute, onde as galés venezianas pegavam as mercadorias.

A RIQUEZA DA ÍNDIA

É este o contexto que tem de ser compreendido no momento em que os portugueses chegam à Índia. O ouro e as especiarias eram o grande móbil económico da empresa, que além do mais carecia de ser financiada e de gerar recursos para o reino e para os futuros investimentos do império. Pode falar-se de uma invasão inesperada dos portugueses, que alterou radicalmente o jogo de forças na região, aproveitando as divergências e os conflitos, designadamente entre hindus e muçulmanos. E note-se que os hindus estavam em posição frágil perante os árabes, uma vez que o sistema de castas os impedia de organizarem armadas marítimas para o transporte de mercadorias. Assim, os portugueses aproveitaram as divisões, as hesitações e a inexperiência técnica para consolidar posições em terra e no mar. Entretanto, as fortalezas que os portugueses iam construindo revelavam-se extremamente eficazes, permitindo o fogo cruzado e tornando-as inexpugnáveis (segundo a experiência do norte de África, especialmente de Mazagão, que se tornou modelo para o Mar Arábico e Golfo Pérsico). A lógica do Estado, que era a de D. João II e em parte de D. Manuel, veio a evoluir para uma progressiva afirmação da iniciativa privada. A oposição entre a lógica de Afonso de Albuquerque e de Lopo Soares de Albergaria, que tanta tinta tem feito correr, significa que foi o primeiro que criou as bases fundamentais que permitiram a circulação, enquanto o segundo abriu as portas ao ganho dos mercadores e às suas próprias iniciativas… O retorno da venda da pimenta cobria globalmente os créditos envolvidos, mas se a rota do Cabo não era muito rentável para a Coroa, a verdade é que o Estado da Índia se tornaria economicamente independente, graças à prevalência do comércio interasiático, os rendimentos do controlo dos circuitos comerciais e à riqueza dos agentes locais. Assim se compreendem as opiniões que encontramos nas personagens de Gil Vicente, em Sá de Miranda e no próprio Camões, com o Velho do Restelo – no fundo, a hemorragia de gente não dava ganho ao reino, suscitando, porém, os fumos da Índia – e a crítica de Diogo do Couto é bem ilustrativa disto mesmo… Para que o poder do Índico se tivesse consolidado foi fundamental a vitória das forças navais portuguesas em 1508 e 1509 em Chaul e Diu contra as forças coligadas do Egito mameluco, do sultanato de Guzerate e do reino de Calecute. Os portugueses alcançaram uma vitória muito clara, aniquilando a força expedicionária egípcia. Em Chaul e Diu a artilharia desempenhou um papel decisivo, o que torna essas batalhas um marco histórico. Em Chaul morreria o jovem D. Lourenço de Almeida, filho de D. Francisco de Almeida. Mas, com estas vitórias os portugueses garantiram o domínio do alto mar no Oceano Índico, podendo, assim, aumentar e consolidar o poder na costa e estender a sua presença ao Golfo Pérsico e ao Sudoeste Asiático. Afonso de Albuquerque tiraria todas as consequências destas batalhas, criando a rede estratégica fundamental do Império Asiático… Quando visitámos a fortaleza de Diu, recordámos a importância do comércio do algodão e os efeitos militares da fortaleza; em Chaul lembrámos a localização singularíssima e o comércio dos cavalos árabes ou as célebres trocas do ouro de Sofala e das especiarias da Índia. Afinal, a Índia foi mais do que um fantástico sonho…

Guilherme d’Oliveira Martins

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