A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Quando a Igreja desceu à Terra” (Lucerna, 2013) transcreve um diálogo conduzido por António Marujo entre dois sacerdotes católicos, um que acompanhou os trabalhos do Concílio Vaticano II, enquanto estudante em Roma, e outro, mais jovem, que tem assumido nos meios eclesiásticos portugueses um papel da maior relevância no tocante à comunicação social. O texto não se limita a assinalar os cinquenta anos do Concílio, procura renovar o debate suscitado, atualizando-o e projetando-o nos dias de hoje… E vem-nos, naturalmente, à memória a figura de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, que representou entre nós o impulso renovador lançado pelo Papa João XXIII. A memória do seu exemplo não pode ser esquecida.

A VIDA DOS LIVROS
de 14 a 20 de outubro 2013


“Quando a Igreja desceu à Terra” (Lucerna, 2013) transcreve um diálogo conduzido por António Marujo entre dois sacerdotes católicos, um que acompanhou os trabalhos do Concílio Vaticano II, enquanto estudante em Roma, e outro, mais jovem, que tem assumido nos meios eclesiásticos portugueses um papel da maior relevância no tocante à comunicação social. O texto não se limita a assinalar os cinquenta anos do Concílio, procura renovar o debate suscitado, atualizando-o e projetando-o nos dias de hoje… E vem-nos, naturalmente, à memória a figura de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, que representou entre nós o impulso renovador lançado pelo Papa João XXIII. A memória do seu exemplo não pode ser esquecida.





UM ENCONTRO MUITO RICO
Este livro resulta de um encontro muito rico entre os Padres Ramón Cazallas e António Rego. Li-o com muito gosto e proveito espiritual e intelectual. Não há em “Quando a Igreja desceu à terra” qualquer revivalismo, mas uma atitude partilhada orientada para o futuro. Há muito por fazer ainda. O que o Concílio Vaticano II nos propôs tem ainda de ser completado e aprofundado. O diálogo é ilustrativo sobre a importância da herança e da memória do Concílio, uma vez que temos a presença do Padre Cazallas, alguém que acompanhou, ainda estudante, os trabalhos em Roma, e do Padre Rego, um clérigo experimentado nas lides da comunicação social, mas que não teve a mesma proximidade física. De um lado, há a impressão próxima, de outro, a leitura mediada… É um bom complemento. E percebemos que o Concílio foi um dom magnífico e uma oportunidade para reafirmar princípios e para responder às mudanças profundas de uma Igreja que deixava de poder ser eurocêntrica. Essa foi a grande mudança: a compreensão de que a Igreja Católica só se afirmaria renovada no mundo global! João XXIII teve uma intuição extraordinária. Abriu as janelas, sem receio das correntes de ar. E houve correntes de ar e houve resfriados, mas pôde ouvir-se o que ia por toda a parte.


A NOÇÃO DE POVO DE DEUS
Ao relermos hoje alguns dos documentos fundamentais, como as constituições Lumen Gentium e Gaudium et Spes, podemos entender a estreita complementaridade entre perspetivas dogmática e pastoral. A Igreja “como povo de Deus, sacerdócio comum, lugar de carismas, em que todos são chamados à santidade e a definição dos leigos pela positiva e o seu lugar como missão” articula-se com a evolução do mundo contemporâneo. E, assim, a crise económica, social e de valores que vivemos deve-se à desatenção que existe relativamente a essas preocupações fundamentais. E é importante dizer que o Papa Francisco tem procurado reforçar essa ligação: “a Igreja tem de sair de si própria, não pode estar fechada num narcisismo teológico, nem estar sempre à volta de si mesma”. Deve estar aberta às periferias… É extraordinário: aliás, lembramo-nos de como João XXIII, pouco antes de morrer, legou ao Concílio e ao mundo a encíclica Pacem in Terris, decisiva para animar o “Esquema XIII” (que viria a ser a constituição Gaudium et Spes), colocando os “sinais dos tempos” na ordem do dia, para abrir os horizontes de mudança, com fidelidade à mensagem de Jesus Cristo. Se não fosse essa persistência, a constituição Gaudium et Spes teria ficado pelo caminho… Infelizmente, a Pacem in Terris continua por cumprir – e deve dizer-se que os primeiros tempos do Papa Francisco repõem, na força dos nossos dias, a atualidade desse apelo lancinante. Os acontecimentos recentes estão a revelar-nos profundas mudanças, que o Papa Bento XVI referiu, de modo muito evidente, na encíclica Caritas in Veritate, que é a crítica mais dura e pertinente feita nos dias de hoje à origens da crise atual – crise da especulação, do negocismo argentário, da irresponsabilidade ambiental, do imediatismo e da indiferença relativamente ao próximo.


SONHO E OUSADIA
O Concílio deve, assim, ser entendido de forma dinâmica: “O sonho e a ousadia de João XXIII lançaram a Igreja num diálogo aberto com a modernidade”. E agora não podemos pensar este impulso como se ele se mantivesse imutável há cinquenta anos. É no tempo de hoje que temos de ouvir o Papa Francisco a fazer-nos compreender que não podemos responder às pretensões dos nossos netos com as audácias dos nossos avós, como gostava de dizer Emmanuel Mounier. “A Igreja quando fica fechada adoece e quando sai pode ser atropelada; prefiro uma Igreja atropelada a uma Igreja doente”… – diz o Papa. A metáfora significa apenas isto: temos de sair, de ir para junto das pessoas, mesmo correndo o risco de ter um acidente…
Há que tirar consequências de tudo isto. O acontecimento é nosso mestre interior. “Agora, a Igreja é um mistério, no qual o povo de Deus vem primeiro e só depois a hierarquia. E é este povo que nos interroga e nos interpela e é a ele que nos devemos dedicar”, como diz o Padre Ramón. E a luz do mundo (lumen gentium) é Cristo, sendo a Igreja apenas (e já é muito) o reflexo dessa luz extraordinária. Eis por que razão os cinquenta anos do Concílio Vaticano II não podem ser um revivalismo, mas sim um desafio de novas respostas. Por exemplo, não explorámos ainda plenamente o papel dos leigos e a colegialidade na Igreja. Basta lembrarmo-nos da última ceia e dos Atos dos Apóstolos. Como afirma o Cónego António Rego “o leigo tem a sua cidadania que não lhe advém do Papa nem dos bispos, mas do sacramento que recebe, que é o batismo”. Daí que a sinodalidade seja fundamental, como método e como modo de viver, de maneira que a Igreja seja fermento na massa. Este desafio não pode ser esquecido.


O PAPEL DA MULHER
Há pouco o Sumo Pontífice disse algo que é muito mais importante do que pode parecer à primeira vista: precisamos de pensar teologicamente o papel da mulher na Igreja – uma vez que estamos ainda muito desatentos ao episódio de Marta e de Maria, sendo que o testemunho de ambas é fundamental para o presente e para o futuro. Por outro lado, o tema dos ritos e da diversidade é também de grande premência. Trata-se de conhecer o Evangelho e de comunica-lo aos diferentes povos, tendo em conta a sua cultura. Tanto por fazer também aí… Devemos, no fundo, ser mais “testemunhas do que mestres” – como afirmou Paulo VI. E aqui está a dificuldade. Temos sempre a tentação de pormo-nos nas nossas tamanquinhas muito seguros de nós mesmos… E só temos a perder com isso. “Os sistemas da economia e da política devem ser reinventados porque os povos são completamente deixados de lado. Há uma crise profunda nas democracias atuais e até nos sindicatos”, insiste o Padre Ramón Cazallas. Os sinais dos tempos obrigam-nos a compreender o significado das Bem-aventuranças como exigências de agora! O Concílio foi um dom de Deus – urge compreendê-lo assim. E este diálogo permite-nos cuidar de muitas sementes que ainda estão por germinar e que temos de lançar à terra…


Guilherme d’Oliveira Martins

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