A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Daniel Bell (1919-2011) morreu em Cambridge (Massachussets) no dia 25 de Janeiro. É um dos autores de referência do pensamento contemporâneo, e «The End of Ideology – On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties» (Free Press, 1960; reed. Harvard U. Press, 1988) é uma das obras fundamentais da segunda metade do século XX, com ecos, por exemplo, na produção teórica e na reflexão de Raymond Aron. O debate sobre o pensamento de Daniel Bell foi, aliás, muito intenso logo após a publicação do referido livro, prolongando-se até 1989, data em que, com a queda do muro de Berlim e o início do ocaso do império soviético, se acentuou a tendência detectada pelo autor nos anos cinquenta. Se, pelo menos até 1968, várias dúvidas se puseram relativamente à pertinência das considerações de Bell, a verdade é que, no largo prazo, o tempo veio a dar razão ao pensador. Guilherme d’Oliveira Martins

de 7 a 13 de Fevereiro de 2011



Daniel Bell (1919-2011) morreu em Cambridge (Massachussets) no dia 25 de Janeiro. É um dos autores de referência do pensamento contemporâneo, e «The End of Ideology – On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties» (Free Press, 1960; reed. Harvard U. Press, 1988) é uma das obras fundamentais da segunda metade do século XX, com ecos, por exemplo, na produção teórica e na reflexão de Raymond Aron. O debate sobre o pensamento de Daniel Bell foi, aliás, muito intenso logo após a publicação do referido livro, prolongando-se até 1989, data em que, com a queda do muro de Berlim e o início do ocaso do império soviético, se acentuou a tendência detectada pelo autor nos anos cinquenta. Se, pelo menos até 1968, várias dúvidas se puseram relativamente à pertinência das considerações de Bell, a verdade é que, no largo prazo, o tempo veio a dar razão ao pensador. 



VIDA E OBRA MULTIFACETADAS
Daniel Bell, ao deixar-nos aos 91 anos, legou-nos uma obra de grande importância, não apenas pelo valor académico, mas também pela influência que conseguiu junto da opinião pública, uma vez que teve sempre a preocupação de assegurar que as suas ideias não se limitassem à esfera académica. O tema do “fim das ideologias” teve grande repercussão (ainda que nem sempre correctamente compreendido), o mesmo se devendo dizer de “Para uma Sociedade Pós-Industrial” (1973) e de “As Contradições Culturais do Capitalismo” (1976). Foi, deste modo, que este sociólogo foi responsável pela adopção de neologismos fundamentais no mundo contemporâneo, como “sociedade pós-industrial” e “sociedade de informação”. Nascido numa família judia muito modesta do “Lower East Side” de Nova Iorque, teve uma infância marcada pela Grande Depressão da década de trinta. Estudou no City College de Nova Iorque. Foi marcado, desde cedo, por ideais socialistas, que estudou criticamente e dos quais viria a demarcar-se parcialmente. Com os seus companheiros Irving Kristol (1920-2009), Nathan Glazer (1924), Seymour Martin Lipset (1922-2006) e Irvin Howe (1920-1993), procurou, seguindo um caminho próprio, estudar e divulgar a melhor maneira de corresponder à evolução no sentido de uma sociedade marcada pela ética da responsabilidade e por uma sínteses entre a liberdade económica e o Estado-Providência. Colaborou nas revistas “The New Leader”, “Commentary” e “Public Interest”. O seu espírito independente sempre se destacou, o que o levou a afirmar não ser legítimo apor-lhe a designação de neo-conservador. Para se definir, preferiu um dia dizer: «Sou socialista em matéria económica liberal em política e conservador na cultura» – «a socialist in economics, a liberal in politicas and a conservative in culture». Bell demarcou-se, assim, de análises simplificadoras a seu respeito. O sociólogo apostou, sim, numa ideia de «utopia empírica», que deveria especificar onde queria ir, como se deveria conduzir a esse objectivo de esperança, qual o custo do projecto, bem como quem iria pagá-lo e justificá-lo. Do que se trata é de analisar prospectivamente a evolução da sociedade, definindo cenários e hipóteses, o que o leva a falar de evolução para uma sociedade pós-industrial, baseada na informação e nas novas tecnologias. A economia evoluiria do predomínio do sector secundário até à influência crescente e actual do sector terciário e dos serviços, como já dissera Jean Fourastié. Tudo isto com destaque para o conhecimento e a aprendizagem e para as novas elites burocráticas e administrativas. Apesar da convergência de preocupações, Alain Touraine, ao falar de sociedade pós-industrial, pretendeu sobretudo salientar os novos conflitos surgidos dessa nova tendência. Por outro lado, ao falar das contradições culturais do capitalismo, mostra o predomínio dos valores e aspirações hedonistas (bem evidentes na recente crise financeira mundial), exprimindo a sua crítica relativamente a uma lógica enfraquecedora da coesão e da confiança.

QUE FIM DAS IDEOLOGIAS?
Com a reflexão sobre o “fim das ideologias”, Daniel Bell não pretendeu decretar qualquer fim da história, mas verificar que as ideologias radicais do industrialismo geradas no século XIX, com o agravamento das desigualdades e o confronto de classes, bem como com o anúncio do suposto fim do capitalismo, foram perdendo força e actualidade perante a emergência do Welfare State, as soluções intervencionistas visando a estabilização da conjuntura económica, a justiça distributiva e a génese do Estado social de mercado notadas depois da crise de 1929 e da guerra mundial. As ideologias conhecidas não seriam, deste modo, algo inerente a todas as sociedades modernas, enquanto factores inevitáveis de mudança, mas algo nascido e desenvolvido em tempos especialmente difíceis e de crise. Por outro lado, as ideologias radicais, como o fascismo e o comunismo, corresponderiam a formas de secularismo religioso, aparecidos como sucedâneos teocráticos, requerendo uma «crença temporal» mas também critérios irracionais de pensamento, segundo o sociólogo. Assim, as ideologias da sociedade industrial (marxismo, liberalismo e conservadorismo) ter-se-iam tornado consequência de um suposto predomínio do positivismo científico e do historicismo, incapazes de se submeter com êxito à prova crítica da “refutabilidade” defendida por Karl Popper em «A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos». Daniel Bell refere, aliás, o exemplo de Anthony Crosland, no Partido Trabalhista inglês, ao colocar a igualdade, a oportunidade e o mérito no centro de um socialismo moderno, bem como da alteração do Programa do Partido Social Democrata Alemão (1959) no Congresso de Bad Godesberg, ao afastar o marxismo como influência dominante, considerando outros contributos e a democracia como questão central em qualquer programa preocupado com a coesão social e económica, privilegiando a reforma em lugar da revolução.

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE, COMO?
Torna-se, pois, necessário haver a libertação do dogmatismo e do lugar comum, podendo repensar-se as premissas de uma crença, uma vez que o revisionismo se reporta sempre aos meios e aos fins (como Bell disse na bela invocação de Anthony Crosland, quando ocorreu a sua morte prematura e inesperada – “Encounter”, Agosto de 1977). E se Max Weber foi uma referência para o pensador americano, a verdade é que a política envolve sempre uma complexa tensão entre a responsabilidade e a convicção, para que a primeira não redunde em oportunismo e a segunda em dogmatismo e auto-convencimento. Por outro lado, Daniel Bell invocou (ao longo do debate que sustentou, a partir do seu livro charneira e do tema da sociedade pós-industrial) o contributo fundamental de Ralf Dahrendorf, que afastava a consideração de classe como decisiva enquanto critério definidor da conflitualidade nas sociedades industriais contemporâneas. Para compreender a nova realidade, haveria, pois, que partir da complexidade dos fenómenos contemporâneos e compreender a ligação entre a economia e o progresso técnico, entendendo-se que o pós-guerra e a sociedade pós-industrial fizeram convergir as políticas públicas de índole económica e financeira. O «baby-boom» depois de 1945, a libertação dos costumes, a emergência de movimentos igualitários nos Estados Unidos (em especial contra a discriminação racial), o sucesso das políticas públicas de estabilização económica e anti-cíclicas no ocidente, os movimentos de autodeterminação nos países colonizados do terceiro mundo, os problemas suscitados pela Guerra do Vietname – todos esses factores serviram de argumento a Daniel Bell para sustentar o seu ponto de vista. Numa palavra, a complexidade social foi tornando cada vez mais evidentes as contradições nas sociedades colectivistas, até à revelação, no tempo da “perestroika”, de que a evolução nas sociedades ocidentais e os progressos da micro-informática, da sociedade de informação e das comunicações não tinham correspondência na então União Soviética e nos Estados colectivistas, o que permitiu uma rápida e surpreendente evolução dos regimes colectivistas do leste europeu no sentido da democracia. Afinal, o revisionismo e o reformismo exigem, para Daniel Bell, a compreensão da ética da responsabilidade de Max Weber, por contraponto à ética da convicção ou dos últimos fins. Desafio difícil, mas necessário,  perante o qual nos encontramos.



Guilherme d’Oliveira Martins

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