A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“La Legitimité Démocratique” de Pierre Rosanvallon (Seuil, 2008) põe-nos perante os problemas suscitados pela institucionalização da democracia na sociedade contemporânea. Mais do que o tradicional dilema entre democracia representativa e democracia participativa, Rosanvallon analisa a sociedade complexa dos dias de hoje, à luz das mudanças ocorridas nas últimas décadas, pondo sobre a mesa as questões suscitadas pela legitimação cidadã. A coesão social, a participação e a representação têm, de facto, nos dias de hoje, um conteúdo e um sentido profundamente diferentes daqueles que encontramos no último século, sobretudo porque os conflitos sociais, a configuração das classes e a relação entre Estado, economia e sociedade registaram profundas transformações depois de 1945 e de 1989 e com a afirmação da sociedade da informação e do conhecimento. Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS
de 15 a 21 de Novembro de 2010


“La Legitimité Démocratique” de Pierre Rosanvallon (Seuil, 2008) põe-nos perante os problemas suscitados pela institucionalização da democracia na sociedade contemporânea. Mais do que o tradicional dilema entre democracia representativa e democracia participativa, Rosanvallon analisa a sociedade complexa dos dias de hoje, à luz das mudanças ocorridas nas últimas décadas, pondo sobre a mesa as questões suscitadas pela legitimação cidadã. A coesão social, a participação e a representação têm, de facto, nos dias de hoje, um conteúdo e um sentido profundamente diferentes daqueles que encontramos no último século, sobretudo porque os conflitos sociais, a configuração das classes e a relação entre Estado, economia e sociedade registaram profundas transformações depois de 1945 e de 1989 e com a afirmação da sociedade da informação e do conhecimento.



QUE DEMOCRACIA, HOJE?
As instituições da democracia-eleitoral representativa têm de ser consideradas ao lado das instituições da democracia indirecta. A sua articulação, segundo Rosanvallon, permite conciliar o factor maioritário e a unanimidade, que constituem os pólos relevantes da legitimidade democrática. Com efeito, a ideia democrática assenta na contradição entre o reconhecimento da legitimidade dos conflitos e a aspiração dos cidadãos ao consenso. O pluralismo pressupõe a aceitação da divergência de interesses e opiniões, o que permite organizar a competição eleitoral e renovar a legitimidade da origem. E a democracia obriga a que haja escolhas para resolver os diferendos e definir os caminhos. Daí a importância de tomar partido, de escolher o campo e de assumir uma cidadania comprometida. Não há democracia sem a formação de um “mundo comum” e sem o reconhecimento de quais os valores partilhados, que permitam regular conflitos e evitar as guerras civis. Compreende-se, deste modo, a distinção entre instituições de consenso e de conflito – para que possa abrir-se caminho à existência de condições de equilíbrio entre a regulação imediata das divergências e a criação de condições duradouras aptas a favorecer a coesão social. Por outro lado, há ainda a contradição entre um princípio realista de decisão (a maioria) e um princípio de justificação (a unanimidade), necessariamente mais exigente. Não há democracia possível e efectiva se não há a possibilidade de decidir e de agir com prontidão e se não se reconhecer a necessidade de proceder a arbitragens e escolhas, capazes de garantir a governabilidade e a confiança. Mas também não pode haver democracia sem instituições aptas a assumir em permanência o sentido do interesse geral e a contribuir (ao menos parcialmente) para a sua realização. Eis por que razão a maioria e a unanimidade têm de ser consideradas na sua especificidade e complementaridade. Trata-se das duas facetas da legitimidade moderna, que muitas vezes não são consideradas adequadamente, ora por sobrevalorização da maioria, ora por dificuldade em compreender a importância dos consensos duradouros. O pluralismo partidário tem de coexistir sempre com a capacidade de definir interesses comuns e formas duradouras de organização. Autores como Wicksell, Buchanan e Tullock foram pondo a tónica no tema, no entanto persiste uma significativa indiferença relativamente a essa ligação necessária, sem a qual se perde a consistência e durabilidade da democracia.


COMPREENDER A FICÇÃO DEMOCRÁTICA
Temos de perceber que há uma espécie de “ficção democrática”, que funciona se for vista como factor de eficiência e de coesão. O governo de maioria deve ser prosaicamente compreendido como uma convenção empírica, diz-nos Rosanvallon. E essa convenção repousa numa legitimidade imperfeita, que precisa de ser confrontada com outras formas de legitimação democrática. Se há, porém, um dualismo nas instituições (o consenso e o conflito), há também dois pólos estruturantes da democracia como governo. De facto, importa compatibilizar o geral e o particular, o global e o local – de um lado, a democracia das decisões (decorrente da legitimidade do voto) e de outro a democracia das condutas (ligada à legitimidade do exercício e à cidadania). E é assim que a sociedade dos indivíduos iguais tem de se articular com um regime de soberania colectiva. A democracia reúne, desse modo, as múltiplas histórias de liberdade, de emancipação e de autonomia, que marcaram a experiência humana. Essas experiências são fundamentais, em cada um dos seus contributos e na sua diversidade. Não bastam fórmulas vagas (poder do povo, soberania popular) nem referências a uma oposição entre poder colectivo e garantia das liberdades pessoais. É fundamental perceber a complexidade social, e ver a democracia como ordem de uma actividade cívica, de um regime político, de uma forma de sociedade e de um modo de governo. E o certo é que essa relação se estabelece de modo separado, concorrente ou simultâneo. Ora, a complexidade social obriga a integrar estes diferentes aspectos a fim de que a legitimação se aperfeiçoe em nome da representatividade, da participação, da confiança, da coesão e da eficiência.

IMPARCIALIDADE, REFLEXIVIDADE E PROXIMIDADE
No século XVII, Montesquieu falou-nos sobretudo de equilíbrio de poderes, de freios e contrapesos. Hoje, para preservar essa necessidade, temos de entender que há formas subtis de pôr em causa o bem fundado da democracia representativa (por força da força condicionadora dos meios de comunicação de massas), daí que, além do pluralismo, das diferenças e da importância das opções concorrentes, seja necessário garantir que haja espaços de imparcialidade – englobando o contrato social maioritário, a preservação dos princípios republicanos, a garantia da coesão nacional e o enquadramento dos interesses particulares. É preciso, no fundo, através da regulação independente (que a crise financeira tornou fundamental), encontrar uma linha adequada de partilha entre a política maioritária e a política da imparcialidade, velando-se pelo tratamento equitativo dos indivíduos, pelo combate de todas as discriminações e pela igualdade de possibilidades e capacidades de todos. A existência de entidades independentes, com garantias efectivas de isenção, reforça o Estado de direito, organizando positivamente a distinção e a complementaridade da sociedade concorrencial e plural. Se há uma lição claríssima da recente crise económica e financeira, essa é a da necessidade de preservar uma política de imparcialidade eficiente e com resultados (desde a regulação à prestação e ao julgamento de contas). Por outro lado, importa dar à reflexão (no julgamento ou na decisão) um papel efectivo, que evite as decisões precipitadas ou ditadas por razões de curto prazo ou circunstanciais. O interesse geral impõe que as decisões sejam ponderadas e justificadas – mas que haja condições para a definição de caminhos e de programas de acção. Tão perniciosa é a demagogia da decisão como a demagogia do bloqueio. Daí que tenha de haver regras consensuais (válidas para todos) sobre as políticas do conflito e do consenso, sobre as decisões conflituais e sobre o modo de respeitar o interesse geral sem bloquear a governação dos povos. A democracia precisa de ser reflexiva e de ter instituições aptas a ponderar as suas decisões. Precisa sempre de tempo, mediação e reflexão. Condorcet defendeu, por isso, a diversificação cruzada de tempos e de modos de expressão da legitimidade popular – segundo o que P. Rosanvallon designa como “soberania complexa”. O povo eleitoral, o povo social e o povo princípio coexistem e completam-se, ora porque votam, ora porque vivem, ora porque afirmam a igualdade jurídica e cívica. Impõe-se, assim, favorecer a expressão de cada um desses domínios, com a sua especificidade própria, evitando a todo o custo a “destruição partidária das instituições”. E se se fala de reflexão, temos ainda de referir a proximidade, das pessoas e o reconhecimento social (na acepção de Charles Taylor). À indiferença temos de contrapor a atenção (e o cuidado) e uma ideia de democracia da interacção e de representação permanente. As pessoas e as situações particulares, a diferenciação positiva, a igualdade e a diferença, eis o que importa!    


Guilherme d’Oliveira Martins


 


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