A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Os Melhores Contos do Padre Brown» de G.K. Chesterton (Assírio e Alvim, Colecção Teofanias, 2010) com selecção e apresentação de Peter Stilwell e tradução de Jorge Pereirinha Pires leva-nos a uma das personagens mais desconcertantes e ricas da literatura policial. Celebrizada no mundo literário e popularizada numa célebre série televisiva dos anos setenta com Kenneth More, para não falar do desempenho de Alec Guinness em 1954, a figura do Padre Brown (que Evelyn Waugh expressamente invoca em “Brideshead Revisited”) é uma curiosíssima síntese entre o método de Chesterton baseado na ironia e no paradoxo e o apelo à refinada inteligência dos leitores.

A VIDA DOS LIVROS
De 23 a 29 de Agosto de 2010.



«Os Melhores Contos do Padre Brown» de G.K. Chesterton (Assírio e Alvim, Colecção Teofanias, 2010) com selecção e apresentação de Peter Stilwell e tradução de Jorge Pereirinha Pires leva-nos a uma das personagens mais desconcertantes e ricas da literatura policial. Celebrizada no mundo literário e popularizada numa célebre série televisiva dos anos setenta com Kenneth More, para não falar do desempenho de Alec Guinness em 1954, a figura do Padre Brown (que Evelyn Waugh expressamente invoca em “Brideshead Revisited”) é uma curiosíssima síntese entre o método de Chesterton baseado na ironia e no paradoxo e o apelo à refinada inteligência dos leitores.



NOVE CONTOS POLICIAIS. – Devemos, antes de mais, salientar o critério de escolha que, de um modo muito feliz, permite uma apreensão abrangente dos temas dos diversos contos das séries do Padre Brown, garante o conhecimento e a compreensão das preocupações intelectuais, espirituais e especulativas de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) e pressupõe o apurado sentido crítico de quem elaborou a antologia (Peter Stilwell), já que a selecção inclui, sem sombra de dúvidas, os melhores textos relativos ao impagável clérigo católico, reveladores da genialidade do prolífico autor. Incluem-se nesta edição: «A Cruz Azul», «O Jardim Secreto», «As Estrelas Cadentes», «A Forma Errada», «Os Pecados do Príncipe Saradine», «O Fantasma de Gideon Wise», «O Segredo do Padre Brown», «O Segredo de Flambeau» e «O Vampiro da Aldeia». Muito se tem discutido sobre as razões que levaram Chesterton a escolher “um pequeno e apagado sacerdote católico para seu detective de eleição”. Há, no entanto, um evidente mecanismo de identificação do escritor com a personagem do Padre Brown, vinda do Essex para Londres, dispondo de “um rosto tão redondo e desinteressante como um pudim de Norfolk” (que fisicamente contrastava, contudo, com a grande estatura do escritor, que media 1,93 m, mas que a ele se assemelhava na aparente desorientação e distracção) E nessa identificação encontramos, a cada passo, os tiques e as atitudes intelectuais que se tornarão familiares para os leitores da obra do autor de “Os Disparates do Mundo”. No entanto, a construção deste “homem de Deus, simples, sábio e humano” aconteceu há exactamente cem anos, em 1910, quando Chesterton ainda estava longe de ter aderido ao catolicismo. Só em 1923 se deu a entrada do jornalista, ensaísta, filósofo e poeta na Igreja Católica Romana, num momento em que os seus contos já circulavam em colectâneas, com grande popularidade, tendo a primeira sido “A Inocência do Padre Brown” (1911). O inventor do Padre Brown tornou-se, entretanto, em 1929, o primeiro presidente do Detection Club, agremiação dedicada ao estudo da literatura policial, fundada por Anthony Berkeley.


UMA FIGURA DESAJEITADA… – Visando tornar mais sugestiva e atraente a personagem que quis criar, o escritor descreve o clérigo como uma figura desajeitada, com o seu «grande e puído chapéu-de-chuva, que lhe estava sempre a cair ao chão», procurando criar “um observador atento do comportamento humano, um analista de perfis psicológicos, que identifica o criminoso a partir do seu agir e da vítima que preferiu”. Se compararmos com outros autores do género policial, verificamos que há diferenças relativamente a Conan Doyle, que Chesterton admirava, conhecendo muito bem toda a sua obra, apesar das preocupações comuns ligadas à descoberta da verdade em casos policiais. O ponto fundamental nos contos de Chesterton é a busca da verdade, o que torna o romance policial uma metáfora da procura da transcendência – que nunca se fica no domínio das grandes certezas ou dos raciocínios inabaláveis, mas sempre no campo dos pormenores insignificantes da vida. Por outro lado, há as semelhanças com a figura de Hercule Poirot de Agatha Christie, sobretudo nas situações de resolução impossível, que Chesterton tornou paradigmáticas na sua obra, como acontecerá com John Dickson Carr (Dr. Fell e Sir Henry Merrivale), autor norte-americano assumidamente influenciado pelo exemplo do Padre Brown. Esclareça-se que Poirot foi criado entre 1916 e 1920, quando a personagem de Chesterton (que Christie conhecia) tinha alcançado já significativa notoriedade. Em “O Segredo do Padre Brown”, o pequeno sacerdote detective reage, aliás, com inesperada energia à dúvida sobre como agia e explica que o método dito científico por muitos obrigaria a «situar-se fora do homem e a estudá-lo como se fosse um gigantesco insecto», sujeitando o eventual criminoso ao que «chamaria uma luz morta e desumanizante». Pelo contrário, o método que preconiza parte do reconhecimento de que, como detective, estava dentro de um homem – «Estou sempre dentro de um homem». E assim olha o mundo como pela primeira vez, iluminando-o como num exercício religioso. É no interior da condição humana que, na verdade, o interrogador aguarda até saber que está dentro de um assassino. Até ser mesmo um assassino. “Na verdade (vi-me) a mim mesmo, e ao meu verdadeiro eu, cometendo crimes (…) Pensei e voltei a pensar sobre como poderia um homem tornar-se assim em tudo a não ser um efectivo consentimento final à acção”. As soluções encontradas têm, por isso, de ser ainda mais imaginativas do que os intrincados problemas postos. A qualidade literária iguala, deste modo, o valor intelectual e espiritual. Pode dizer-se, aliás, que é no “Segredo do P. Brown”, mas também em “A Cruz Azul”, que se encontram as respostas à dúvida sobre o porquê de um pensador e polemista escolher o género policial para desenvolver o seu talento. Afinal, ao desenvolver o raciocínio para descobrir a verdade, sobretudo em situações inextricáveis ou aparentemente irresolúveis, o escritor põe na boca e nas conclusões da sua personagem o resultado de uma cuidadosa intervenção da razão. Quando Flambeau, o persistente adversário do Padre, pretende fazer-se passar por um presbítero, em “A Cruz Azul”, compondo com os maiores cuidados uma figura verosímil, não consegue enganar Brown, tendo a mistificação sido descoberta através de um pormenor. É que Flambeau caiu no erro de atacar a razão, em nome de uma suposta fé. Ora, para o nosso detective isso era, como seria fácil de ver, má teologia…


O INESPERADO PAPEL DA RAZÃO. – O Padre Brown resolve os seus crimes através de um estrito processo racional, ligado ao espiritual e ao filosófico, em lugar do recurso a detalhes científicos (e aqui encontramos uma claríssima crítica ao positivismo em voga no início do século XX, com repercussões evidentes nas ciências criminológicas). Nesse sentido, o Padre Brown renova o método de Sherlock Holmes, usando a razão e a intuição para ultrapassar a incompreensão positivista dos limites e antecipa as orientações filosóficas do novo século. Ao longo desta experiência, Chesterton ilustra uma afirmação que irá celebrizá-lo: «O louco não é aquele que perdeu a razão: mas aquele que perdeu tudo, menos a razão». Aqui a razão é vista como se fosse uma categoria incapaz de entender que a dignidade humana obriga a cultivar o equilíbrio entre a racionalidade e a emoção. Razão e fé completam-se, nas pesquisas quotidianas do Padre Brown, que, sendo o mais inesperado dos detectives, é também o mais eficaz, não se limitando a protagonizar um entretenimento. E é a modéstia de Brown que lhe permite chegar longe, entendendo a necessidade de compreender constrangimentos e dificuldades. Como os melhores filósofos ensinam, desde os luminosos diálogos de Platão, do que se trata sempre é de procurar a verdade, onde quer que ela se encontre, mesmo que esteja no mais recôndito dos lugares, sem a tentação de considerar fácil a sua descoberta.

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