A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Albert Camus (1913-1960), que escreveu “A Queda” em 1956 (tradução portuguesa de José Terra, Livros do Brasil, s.d.), é um símbolo do século XX. Estamos perante uma obra da maturidade. A sua vida, o seu percurso pessoal, a obra literária e o pensamento confundem-se com o drama humano do século. As dúvidas, as contradições, os êxitos e os fracassos que viveu dão-lhe uma importância que o tempo tem vindo a aumentar. Se, por um lado, a sua obra tem uma importância inovadora, também é certo que as suas intuições históricas se revelaram de uma grande pertinência. Poderíamos falar dos seus livros de maior sucesso como “L’Étranger” (1942), “Le Mythe de Sisyphe” (1942), “La Peste” (1947), “L’Homme Revolté” (1951) ou “Le Premier Homme” (1994), no entanto preferimos pegar nas preocupações fundamentais do romancista e nos seus temas recorrentes – o absurdo e a procura de uma esperança, que em “A Queda” estão bem presentes.

A VIDA DOS LIVROS
De 11 a 17 de Janeiro de 2010.



Albert Camus (1913-1960), que escreveu “A Queda” em 1956 (tradução portuguesa de José Terra, Livros do Brasil, s.d.), é um símbolo do século XX. Estamos perante uma obra da maturidade. A sua vida, o seu percurso pessoal, a obra literária e o pensamento confundem-se com o drama humano do século. As dúvidas, as contradições, os êxitos e os fracassos que viveu dão-lhe uma importância que o tempo tem vindo a aumentar. Se, por um lado, a sua obra tem uma importância inovadora, também é certo que as suas intuições históricas se revelaram de uma grande pertinência. Poderíamos falar dos seus livros de maior sucesso como “L’Étranger” (1942), “Le Mythe de Sisyphe” (1942), “La Peste” (1947), “L’Homme Revolté” (1951) ou “Le Premier Homme” (1994), no entanto preferimos pegar nas preocupações fundamentais do romancista e nos seus temas recorrentes – o absurdo e a procura de uma esperança, que em “A Queda” estão bem presentes.



Albert Camus por Gonzalo Cárcamo


O ABSURDO COMO CONFRONTO
« L’absurde naît de cette confrontation entre l’appel humain et le silence déraisonnable du monde » – assim se exprime Albert Camus, definindo a sua atitude perante a humanidade e a vida. E a verdade é que, desde a infância pobre na Argélia, a sua vida foi-se construindo num sentido de independência e de lucidez, num horizonte de autonomia e de liberdade. E o certo é que entre o apelo humano e o silêncio do mundo há um vazio de razão que obriga o pensador a interrogar-se e a procurar motivos para que acção se faça e possa prosseguir. Na sua obra-prima, fala-nos, nesse sentido, do mito de Sísifo – o herói da antiguidade punido por ter desafiado os deuses, cuja pena era a de empurrar, por toda a eternidade, uma enorme pedra até ao cimo de uma montanha. Uma vez chegada ao topo a pedra rolava até abaixo e Sísifo tinha de a empurrar de novo num movimento inexorável e absurdo. Camus via em Sísifo o ser que vive a vida plenamente, odiando a morte, mas estando condenado a uma tarefa sem sentido. Apesar de reconhecer essa falta de sentido, Sísifo continua a executar essa tarefa permanente e Albert Camus apresenta o mito como metáfora da vida moderna: “o operário de hoje trabalha todos os dias, repetindo as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, e é trágico uma vez que apenas em raros momentos ele se torna consciente”. Em “A Queda” sentimos essa mesma tensão na primeira pessoa. O absurdo e a procura de sentido põem a questão dos limites da acção e da vida. E em dado passo do livro, ouvimos a invocação dos limites, a morte e a culpa, e a propósito deles é posta a interrogação sobre a atitude perante quem já ultrapassou essa fronteira. “Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira, mas sabe porque somos sempre mais justos e generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo-de-água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória e nós temos a memória curta”.
AS TAREFAS E A FALTA DE TEMPO… 
A memória é curta e a indiferença é grande… O que sentimos? É estranho o que vai acontecendo e perguntamo-nos amiúde em que caminho nos encontramos e que consciência temos dos deveres que nos impomos e do seu fundamento. E essa percepção acontece muitas vezes em momentos excepcionais, em situações nas quais somos confrontados com o que não esperamos, mas que temos de considerar como inerente à vida. E ficamos bloqueados, sem saber o que fazer ou o que responder, sendo que essa circunstância fica suspensa no tempo como factor de bloqueio. É isso que acontece no momento crucial nas margens do Sena com uma mulher: “Tinha percorrido já uns cinquenta metros, mais ou menos, quando ouvi um baque, que, apesar da distância, me pareceu formidável no silêncio nocturno, de um corpo que tomba na água. Estaquei, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito, várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite subitamente parada, pareceu-me interminável. Quis correr e nem me mexi”. Nada fez e nos dias seguintes nem se atreveu a ver os jornais. Dois ou três anos depois, quando passava na Pont des Arts, estalou um riso atrás de si, incompreensível e persistentemente – mas esse riso nada tinha de misterioso, era um riso natural, quase amigável… Mas era uma recordação perturbadora. A singularidade desse estranho evento exigia o entendimento de que há limites e de que a consciência do absurdo pode levar à desistência ou à percepção de que falta tempo a todos para realizar as tarefas a cada um confiadas. Se falta tempo, também há quem não suporte a incapacidade de justificar a vida. “Vou dizer-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Realiza-se todos os dias”. Emmanuel Mounier disse, pouco antes de morrer, que Camus preferia a aproximação carnal, que referia a uma face ou a uma mão à aproximação que apenas se referia a uma ideia. E, depois de um jogo de gato e rato, que tentava iludir a angústia e o absurdo, ouvimos, no final de “A Queda”, o pedido que se antecipamos em todo o romance: «Conte-me então, peço-lhe, o que lhe aconteceu uma noite nos cais do Sena e como conseguiu nunca mais arriscar a vida. Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não cessam de retinir nas minhas noites, e que eu direi enfim pelas sua boca: ‘Ó pequena, deita-te de novo à água para que eu tenha pela segunda vez a sorte de nos salvar a ambos!’ Pela segunda vez, hein?, que imprudência! Suponha, caro colega, que nos toma à letra. Teríamos de cumprir. Brr…! A água tão fria! Mas tranquilizemo-nos! É tarde de mais, agora será sempre tarde de mais. Felizmente!». Jean-Baptiste Clamence descobre, por si, isoladamente, a estranha origem do mal. E o seu drama é ditado não pela acção, mas pela indiferença, que o perseguirá ao longo do tempo. No epílogo ainda há, num assomo passageiro, o desejo de regressar a esse dia distante nos cais do Sena para que a virtude pudesse ser recuperada. Mas a lucidez serena do protagonista coloca-nos no mesmo ponto em que a omissão e a indiferença falaram mais alto. É tarde de mais! E se o drama se mantém de pé, com a estranha recordação do riso ouvido na Pont des Arts, a verdade é que o absurdo manifesta-se inexoravelmente e contra ele nada é possível. Afinal, o absurdo é o contrário da esperança, como se diz em “O Mito de Sísifo”…
FILOSOFIA EM IMAGENS. 
“Un roman n’est jamais qu’une philosophie mise en images” – disse Camus, e « A Queda » ilustra plenamente esse entendimento. Jean-Baptiste Clamence retoma o drama de Sísifo. Cinco anos depois de “L’Homme Revolté” (e da ruptura com J.P. Sartre), percebe-se que o sentimento de Camus relativamente à revolta e à esperança dependa da consciência do homem livre, capaz de duvidar e de amar, e de se demarcar dos messianismos temporais ou de dizer que entre um ideal e a sua própria mãe (que arriscava a vida nos transportes públicos, em Argel, sob a ameaça das bombas) preferia a vida da mãe. “Cada revolta é nostalgia da inocência e apelo para o ser. Mas a nostalgia toma um dia as armas e assume a culpabilidade total, quer dizer a morte e a violência”. A revolta, para Camus, permite superar a lógica puramente individual. Leva à tomada de consciência do que nos une aos outros. Pelo contrário, a revolução prefere o homem abstracto ao homem de carne e osso. A revolta visa a unidade, a revolução histórica a totalidade, uma é criadora a outra niilista. Albert Camus, morto há cinquenta anos, continua a interrogar o tempo actual, o que significa que compreendeu bem as pessoas concretas, mais do que a abstracção das existências.


Guilherme d’Iliveira Martins

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