A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Viagens de Pêro da Covilhã” da autoria do Conde de Ficalho (reedição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988; 1ª ed. 1898) é uma obra preciosa que merece ser lida e relida. O autor foi um cientista de mérito, que colocou nas obras que escreveu sempre um grande cuidado e rigor histórico, que neste estudo se nota especialmente. Com efeito, ainda hoje não é possível estudar as viagens de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva sem ler o Conde de Ficalho e sem recorrer à obra fundamental do Padre Francisco Álvares “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”, livro publicado no reino em 1540, baseado no testemunho pessoal recolhido junto do próprio Pêro da Covilhã. Daí que tenham sido o Conde de Ficalho e o Padre Álvares auxiliares preciosos na preparação da Embaixada cultural do CNC a Ormuz aos fortes portugueses do Golfo Pérsico e ao Cairo.

 



A VIDA DOS LIVROS
De 14 a 20 de Setembro de 2009


“Viagens de Pêro da Covilhã” da autoria do Conde de Ficalho (reedição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988; 1ª ed. 1898) é uma obra preciosa que merece ser lida e relida. O autor foi um cientista de mérito, que colocou nas obras que escreveu sempre um grande cuidado e rigor histórico, que neste estudo se nota especialmente. Com efeito, ainda hoje não é possível estudar as viagens de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva sem ler o Conde de Ficalho e sem recorrer à obra fundamental do Padre Francisco Álvares “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”, livro publicado no reino em 1540, baseado no testemunho pessoal recolhido junto do próprio Pêro da Covilhã. Daí que tenham sido o Conde de Ficalho e o Padre Álvares auxiliares preciosos na preparação da Embaixada cultural do CNC a Ormuz aos fortes portugueses do Golfo Pérsico e ao Cairo.



Preste João, Queen Mary’s Atlas, British Museum,
pormenor, Diogo Homem, 1558.


OS PREPARATIVOS DA NOSSA VIAGEM
Se Afonso de Albuquerque guia os nossos passos neste périplo até ao Golfo Pérsico e ao sistema defensivo de Ormuz, o certo que Preste João das Índias tornou-se, naturalmente, uma das nossas obsessões, uma vez que D. João II na preparação cuidadosa do Plano da Índia, se preocupou com a criação de uma aliança com o Imperador cristão da região. E se os descobrimentos tinham como fito especiarias e cristãos, percebe-se por que razão as missões de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva foram fundamentais. Apesar de tudo, Albuquerque já sabia que o Preste tinha pouco poder na região, mas simbolicamente era relevante. O livro do Conde de Ficalho tornou-se, deste modo, um vade mecum imprescindível relativamente aos prolegómenos da viagem de Vasco da Gama. Mas vamos um pouco atrás. Marco Pólo, o mercador veneziano, que chegou aos confins da Ásia, visitou duas vezes Ormuz, ponto de encontro de várias rotas comerciais na zona do Golfo Pérsico. Como sabemos, o Infante D. Pedro trouxe do seu périplo europeu (no primeiro quartel do século XV) um exemplar do Livro de Marco Pólo, facto que terá contribuído decisivamente (com o mapa do Índico de Fra Mauro) para a tomada de decisão de contornar a África para chegar ao Índico. É nesta ordem de ideias que Príncipe Perfeito, no culminar da execução do Plano das Índias, envia Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, em 1487, respectivamente para a Etiópia e para a Índia. Na cidade do Cairo separaram-se, algures em 1488, com a combinação de se reencontrarem junto à porta da cidadela provavelmente nos primeiros dias de 1491. O Padre Álvares apenas diz. “ficando que a hum tempo certo se ajuntassem ambos no Cairo pera viren dar conta a el Rey do que achava”. Pêro da Covilhã visitará a costa do Malabar, certificando-se das possibilidades económicas e comerciais da zona e chegado a Ormuz decidiu partir para a costa oriental de África (Melinde, Quiloa, Moçambique), fazendo um levantamento rigoroso dos pontos que Vasco da Gama irá percorrer. Ao que tudo indica (graças aos cálculos do próprio Conde de Ficalho) em fim de Janeiro de 1491, na porta da cidadela do Cairo, Pêro não encontrará Afonso de Paiva, mas sim o rabino de Beja, Abraão, e um judeu português José de Lamego que o informam da morte de Paiva, vítima de peste pouco tempo antes. “Ao mesmo tempo que o nosso viajante era assim informado da morte do seu companheiro, encontrava-se com dois judeus portugueses, enviados pelo rei de Portugal em sua procura, os quais, com muita habilidade e manha, o souberam descobrir na cosmopolita confusão das ruas e bazares do Cairo”. Aqui Ficalho colhe a informação em Álvares, mas também em Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel. Pêro da Covilhã entrega o seu relatório para o Rei a José de Lamego e volta a partir com o Rabi de Beja para Ormuz (sempre essa placa giratória das rotas entre o ocidente e o oriente), para seguir daí para a Etiópia, onde ficará (não se sabe ao certo se por vontade própria) e estabelecerá família, descobrindo que o reino mítico do Preste João não é poderoso nem rico. Recebeu a visita de alguns portugueses a quem deu notícias importantes. Em 1521, o embaixador D. Rodrigo de Lima encontra-o. O importante relato das suas viagens foi feito então ao padre Francisco Álvares pelo próprio Pêro da Covilhã, tendo sido publicado no reino integrado na citada obra “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”.


AFONSO DE ALBUQUERQUE
Mas falar de Ormuz e do Golfo Pérsico, é referir Afonso de Albuquerque, com o seu génio estratégico, que considerou essa praça como ponto fundamental na conquista da entrada do Golfo Pérsico – local crucial de passagem das rotas mercantis e posto estratégico na articulação entre o comércio europeu e asiático. Por aí eram escoados os produtos exóticos transportados pelas caravanas de Bassorá ou Alepo rumo ao Mediterrâneo. Em Outubro de 1507, Albuquerque atacou a cidade, dominando-a. E praticamente concluiu a construção do Forte de Nossa Senhora da Vitória só interrompida pelo chamado Motim dos Capitães e consequente deserção. No entanto, em Abril de 1515, Albuquerque, já governador da Índia, mandou reconstruir o Forte de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz, fixando os termos da submissão ao Rei de Portugal. João de Barros, nas Décadas da Ásia (II, II, 2), disse que “a cidade de Ormuz está situada em hua pequena ilha chamada Gerum que jaz quasi na garganta de estreito do mar Parseo tam perto da costa da terra de Persia que avera de hua a outra tres leguoas e dez da outra Arabia e terá em roda pouco mais de tres leguoas: toda muy esterele e a mayor parte hua mineira de sal e enxolfre sem naturalmente ter hum ramo ou herva verde. A cidade em sy é muy magnifica em edificios, grossa em tracto por ser hua escala onde concorrem todalas mercadorias orientaes e occidentaes a ella, e as que vem da Persia, Armenia e Tartaria que lhe jazem ao norte: de maneira que nam tendo a ilha em sy cousa propria, per carreto tem todalas estimadas do mundo /…../ a cidade é tam viçosa e abastada, que dizem os moradores della que o mundo é hum anel e Ormuz hua pedra preciosa engastada nelle”.


MASCATE, CIDADE MÁGICA
Já quanto a Oman, fronteiro a Ormuz, o próprio Afonso de Albuquerque disse em 1507: “Mascate he uma cidade grande, muito bem povoada, cercada da banda do sertão tem um campo tamanho, como o Rossio de Lisboa, todo feito em marinhas de sal, não que a maré chegue ali, mas a agoa, que nelle nasce, he salgada e torna-se em sal; e aqui perto tem muitos poços de água doce, donde bebiam os moradores: tinha pomares, hortas, palmeiras com poços para regar, que se tira agoa delles com engenho de bois. O porto é pequeno, de feição de uma ferradura e abrigado de todos os ventos”. Os fortes portugueses do Golfo Pérsico são, assim, referências fundamentais, para compreendermos o modo como Afonso de Albuquerque delineou e concebeu o Império da Ásia. O domínio do estreito de Ormuz tem de se ligar à centralidade de Goa e à presença em Malaca. E não podemos esquecer que o pensamento de Albuquerque ligava o comércio do Índico à necessidade de controlar o Mediterrâneo oriental, o Egipto e a Terra Santa. Daí os projectos audaciosos e excessivos que alimentou (desde o desvio das águas do Nilo até à hipótese de rapto do corpo do profeta Mohamed). No entanto, temos de reconhecer a grande capacidade de direcção militar, económica e política de Afonso de Albuquerque. Conhecem-se as circunstâncias em que foi destituído das suas funções por razões muito pouco claras, que poderão ir da pura intriga às discordâncias estratégicas, até por causa do carácter impetuoso e tirânico do chefe político e militar. Ficou célebre a frase que a tradição lhe atribui, no momento em que soube da sua destituição e substituição por Lopo Soares de Albergaria: “Mal com El-Rei por amor dos homens, mal com os homens por amor de El-Rei”. Em mais esta embaixada do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da sua História” temos, pois, muitos motivos para invocar uma memória viva, numa zona cheia de lembranças e invocações! Uma palavra de agradecimento ao Engº Fernando Melo Antunes que nos desafiou para esta aventura. Desde Marco Pólo até hoje, passando por Pêro da Covilhã, Afonso de Paiva, Afonso de Albuquerque, quantas invocações!


Guilherme d’Oliveira Martins


 

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