A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Adolfo Casais Monteiro – Uma Outra Presença” (Biblioteca Nacional de Portugal, 2008) é mais do que um catálogo da excelente exposição organizada aquando do centenário do nascimento do autor presencista, é um conjunto de estudos e documentos elaborados e escolhidos com critério e competência. A exposição da Biblioteca foi comissariada por Carlos Leone com a participação de Fátima Lopes na pesquisa e no catálogo. Pode dizer-se que Casais Monteiro (1908-1972) é uma das figuras mais importantes do seu tempo, pela sua singularidade, pela independência de espírito que assumiu e pela capacidade única que revelou de compreensão das tendências fundamentais da cultura. É um caso especial no panorama cultural português: foi um heterodoxo que quis perceber a modernidade pela “autenticidade”, não se deixando aprisionar em cânones neo-realistas ou outros, entendendo a revista “presença” como orientada para a abertura de horizontes e procurando compreender o fenómeno poético contemporâneo como tal, enquanto libertação e “nova consciência na qual o homem se reconheça livre da era das ilusões e cativo da incapacidade de transformar o mundo”.

A VIDA DOS LIVROS
De 13 a 19 de Abril de 2009.



“Adolfo Casais Monteiro – Uma Outra Presença” (Biblioteca Nacional de Portugal, 2008) é mais do que um catálogo da excelente exposição organizada aquando do centenário do nascimento do autor presencista, é um conjunto de estudos e documentos elaborados e escolhidos com critério e competência. A exposição da Biblioteca foi comissariada por Carlos Leone com a participação de Fátima Lopes na pesquisa e no catálogo. Pode dizer-se que Casais Monteiro (1908-1972) é uma das figuras mais importantes do seu tempo, pela sua singularidade, pela independência de espírito que assumiu e pela capacidade única que revelou de compreensão das tendências fundamentais da cultura. É um caso especial no panorama cultural português: foi um heterodoxo que quis perceber a modernidade pela “autenticidade”, não se deixando aprisionar em cânones neo-realistas ou outros, entendendo a revista “presença” como orientada para a abertura de horizontes e procurando compreender o fenómeno poético contemporâneo como tal, enquanto libertação e “nova consciência na qual o homem se reconheça livre da era das ilusões e cativo da incapacidade de transformar o mundo”.



UM INTÉRPRETE EXCEPCIONAL.
Casais Monteiro está na cultura portuguesa sobretudo como crítico e como ensaísta, mas não pode ser esquecido como poeta e cultor de outros géneros. E manda a verdade dizer que foi o seu olhar atento e sensível relativamente ao fenómeno poético em geral que lhe permitiu perceber talvez antes de todos o valor da principal poesia portuguesa de meados do século XX, num período especialmente fasto da criação nacional. Mas para entender o seu lugar no panorama português é preciso seguir-lhe o percurso, e vê-lo a acompanhar os movimentos fundamentais do século português – desde “A Renascença Portuguesa” até à “Presença”, passando pela premonitória compreensão de Fernando Pessoa e de “Orpheu” e continuando em tudo o que de mais importante se segue. Se é certo que fez parte do grupo do Porto da Renascença, depressa pôde libertar-se de qualquer limitação de escola, sobrevoando com excepcional mestria o que se ia fazendo para além de constrangimentos de grupos ou amizades. Como diz Carlos Leone: “Sem simplificar o que é complexo (e Pessoa tem uma trajectória única que o leva a todo um outro espaço, que Casais irá procurar), certo é que Casais conhecerá bem, e viverá sentidamente este ar cultural do seu Porto natal, mas não se fixará nele. Nem sequer em Portugal”.
UMA PERSONALIDADE ATENTA. 
E se se pode dizer que Renascença foi um ponto de partida para quase tudo o que marcou a criação literária numa parte importante do século XX português, Casais Monteiro foi porventura o melhor intérprete e o exemplo dessa riqueza concentrada, complexa e divergente. Mas vejamos os passos do ensaísta e do crítico. Leone encontra quatro etapas numa vida que se foi enriquecendo pelos diferentes estímulos a que foi correspondendo. Até 1931 vemo-lo sobretudo inserido no ambiente do Porto, na Faculdade de Letras (encerrada em 1928), ao lado de Leonardo Coimbra, de Álvaro Ribeiro, de Delfim Santos e ainda próximo do poeta Ribeiro do Couto, a colaborar em “A Águia” então já sob a direcção de Leonardo. A partir de 1931, o seu centro geográfico estará em Coimbra (onde completa a formação para professor), pertence ao directório da revista “presença”, não perde contacto com o grupo da “Renovação Democrática” do Porto (que merece ser recordado e melhor compreendido), mas as suas posições políticas claramente oposicionistas condicionam a sua vida profissional, sendo obrigado a vir para Lisboa para sobreviver graças a diversos trabalhos literários de que é incumbido, é várias vezes preso e casa-se com Alice Pereira Gomes (irmã de Soeiro P. Gomes). De 1940 a 1954 vive um período difícil, de “projectos soçobrados”, de tensões profissionais e familiares, em Lisboa (onde trabalha intensamente em traduções e publicações) pode aperceber-se da diversidade e riqueza da criação literária no pós-guerra: depois da burguesia liberal do Porto, do segundo modernismo coimbrão, encontra o surrealismo com O’Neill, J.A. França e o que será seu grande amigo, Fernando Lemos. Em 1954, parte para o Brasil, para participar no Congresso internacional de escritores integrado no IV Centenário da Cidade de S. Paulo, “com planos para aí se fixar”, e encontra reconhecimento na Universidade de S. Paulo (Araraquara), onde passa a ensinar Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa Contemporânea, e assim torna-se o elemento do grupo da “presença” com produção académica mais relevante, ganhando especial influência. Neste tempo, convive com outros emigrados, como Jorge de Sena e Fernando Lemos, participa na oposição ao regime (leia-se o injustamente esquecido “O País do Absurdo”), sempre com independência de espírito. Morre prematuramente em 1972, com a saúde muito debilitada, depois da morte de Raquel Moacir, com quem vivia, tendo-se separado de Alice P. Gomes depois de estar no Brasil.
A DESCOBERTA DE FERNANDO PESSOA. 
Neste caminho, Casais Monteiro tem uma importância especial quer como analista e crítico de grande argúcia e maturidade, quer como protagonista da história literária, sendo o elemento que teve um papel decisivo nos contactos entre os presencistas e Fernando Pessoa. Se dúvidas houvesse basta ler-se a carta de Pessoa a Casais sobre a génese da heteronímia para percebermos o seu papel essencial, ainda que não tenha inserido na sua própria obra esses documentos, por distanciamento crítico – “também por Casais ter tido bem cedo a noção de que a sua Obra era construída em diálogo com outros mas definia-se em termos que tinham de ser próprios”, na expressão de C. Leone. Se há quem tenha percebido desde muito cedo a importância de Fernando Pessoa como personalidade multímoda e como referência mítica da cultura portuguesa contemporânea foi Casais Monteiro, naturalmente com Gaspar Simões, mas com uma originalidade especial no modo como foi abrindo as várias portas que foram conduzindo à figura fascinante do poeta dos heterónimos, tornado símbolo que se projecta além fronteiras. Aliás, o texto de Maria Aliete Galhoz sobre o seu contacto com o ensaísta, a propósito da elaboração da sua tese de licenciatura sobre “O Movimento Poético de Orpheu” é notável pelo que nos revela da probidade do orientador de ocasião e da persistência da orientanda, sob a sombra bem presente do Dr. Joaquim Magalhães. Entre o escritório do Dr. Casais Monteiro e a sala de D. Henriqueta Madalena, irmã de Pessoa, passou-se um extraordinário momento da vida da jovem investigadora, que se tornaria uma das nossas melhores especialistas do poeta de “Mensagem”.
RECORDAR UMA POLÉMICA.
Teresa Arsénio Nunes, ao analisar a poesia de Casais Monteiro, fala com justiça do “homem superior que ia no poeta: esse mesmo que tinha recorrido ao exílio para pedir da poesia, como da música e certas artes enquanto expressão de uma superioridade do homem, acima de tudo um protesto do homem contra si próprio”. E naturalmente vem à baila o texto de Eduardo Lourenço “Presença ou a contra-revolução do modernismo português?” (publicado inicialmente sem ponto de interrogação em “O Comércio do Porto” a 14.6.1960) onde este afirmava: “O universo de ‘Orpheu’ é um abalo radical que num segundo de terror e êxtase confunde na terra desolada os deuses e os demónios. O drama da ‘presença’ é o de homens que entre as ruínas de uma terra novamente quieta procuram com fervor a imagem de um deus mais intacto para adorar. Enquanto o não acham, o prazer e a angústia da busca lhes servem de verdadeiro deus”. Ao contrário do que julgou ver Gaspar Simões não era de contra-revolução política que Lourenço falava, mas de poesia (e de Régio). E Casais entendeu-o, pôs reservas à crítica (argumentando), aceitou-a no essencial, mas recusou a dramatização com base num equívoco, que de facto não havia. É certo, porém, que os cortes da censura a tudo o que referisse Casais baralharam a polémica de início. Ali estava o crítico igual a si próprio, rigoroso e incapaz de cultivar simplificações. Adolfo Casais Monteiro acreditava na consciência do “escritor participante”, era heterodoxo por gosto de autonomia e de liberdade, cultivando a busca da verdade sem ademanes.


E oiça aqui as minhas crónicas na Renascença.
                                                                         Guilherme d’Oliveira Martins

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