A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“Indagações sobre uma Vida Melhor” (Civilização Brasileira, 1986) de Dom Hélder Câmara, o arcebispo mítico de Olinda e Recife, merece ser recordado no momento em que assinalámos a 7 de Fevereiro o primeiro centenário do nascimento do autor, para quem “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Ao lado de Alceu Amoroso Lima, foi um dos agitadores dos espíritos no sentido da liberdade e da justiça, crente de que a maneira de ajudar os outros é provar-lhes que são capazes de pensar.

A VIDA DOS LIVROS
de 16 a 22 de Março de 2009


“Indagações sobre uma Vida Melhor” (Civilização Brasileira, 1986) de Dom Hélder Câmara, o arcebispo mítico de Olinda e Recife, merece ser recordado no momento em que assinalámos a 7 de Fevereiro o primeiro centenário do nascimento do autor, para quem “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Ao lado de Alceu Amoroso Lima, foi um dos agitadores dos espíritos no sentido da liberdade e da justiça, crente de que a maneira de ajudar os outros é provar-lhes que são capazes de pensar.  



Encontro no Rio de Janeiro, 1936. Manuel Bandeira (3º da 2ª fila da E. para a D.),
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athaíde, 5º) e Padre Hélder Câmara (7º).


UMA BIOGRAFIA INCONFORMISTA
A biografia de Dom Hélder Câmara (1909-1999) é riquíssima. Foi um dos promotores da renovação da Igreja brasileira, através da criação de comunidades de base e da ideia de libertação humana. Defendeu activamente a colegialidade da Igreja e conseguiu no início dos anos cinquenta, pela actuação directa junto do Monsenhor Giovanni Battista Montini, então subsecretário de estado do Vaticano, futuro papa Paulo VI, a aprovação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que teria sede no palácio arquiepiscopal do Rio de Janeiro (1952). Nesta instituição, exerceria um papel decisivo como secretário-geral até 1964. No desenvolvimento das conclusões do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, em 1955, no Rio de Janeiro, assumiu um papel fundamental para a afirmação do prestígio e da influência da Igreja Católica numa América latina virada para a liberdade e a justiça, servindo a experiência brasileira de exemplo e de base para a criação, de novo graças ao apoio de Mons. Montini, do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, com sede em Bogotá. A fundação em 1955 ocorreria na primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada no Rio de Janeiro, tendo D. Hélder Câmara sido o principal organizador. Depois, o Padre Hélder (como gostava de ser tratado, e Alceu recordava tantas vezes) viria a participar nas conferências gerais do CELAM como delegado do episcopado brasileiro, até 1992. São marcantes as participações e as suas intervenções nas conferências de Medellín (1968), de Puebla (1979) e de Santo Domingo (1992). Em 1956, funda a Cruzada de São Sebastião, com a finalidade de dar habitação condigna aos pobres das favelas. Em 1959, cria o primeiro Banco da Providência, cuja acção se desenvolve no atendimento a pessoas mais pobres e carenciadas. O golpe militar brasileiro e os seus efeitos, bem como diversas incompreensões na arquidiocese do Rio tornam impossível a presença de Dom Hélder em Guanabara. A 12 de Março de 1964, é nomeado Arcebispo de Olinda e Recife, múnus que exerce até 1985. Aí prossegue as orientações que defendera anteriormente. Pugna pela colegialidade eclesial e cria o Movimento Encontro de Irmãos, funda um novo Banco da Providência e a Comissão de Justiça e Paz e fotalece as comunidades de base. Foi um resistente ao regime militar e pregou, no interior e no exterior, a defesa intransigente dos direitos humanos e da causa dos pobres. Como disse um dia, “Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista.” O seu inconformismo tornou-se de tal modo incómodo, a ponto de lhe ser negado o acesso aos meios de comunicação social ao abrigo das medidas excepcionais da ditadura. Tornou-se então, mais activamente, um defensor da não-violência activa.


O ENCONTRO COM ANTÓNIO ALÇADA
Cite-se aqui o “nosso” querido António Alçada Baptista: «Dom Hélder ajudou-me muito. Quando a Livraria Morais lançou a revista Concilium (uma revista de teologia pós-conciliar que saía em vários países), não consegui obter o imprimatur da Igreja portuguesa. Dom Hélder aceitou que eu abrisse uma sucursal no Brasil, com sede na sua própria casa e por isso esta revista tem escrito com grande orgulho meu: “Edição da Livraria Morais – Lisboa – Recife”. Mas escreveu-me sobre a conveniência de não pôr o nome dele em qualquer publicação que necessitasse de imprimatur: ‘O meu aval criaria problemas em certas áreas de extremo reaccionarismo’. Pediu então a Dom Aloísio Lorsheider, um bispo do Rio Grande do Sul – um nome mais pacífico – para me dar essas autorizações. (…) Dom Hélder não estava na terra. Ele, mesmo fisicamente, parecia um extraterrestre. Sei que, já depois de retirado das lides apostólicas, foi com dois meninos da rua ver o filme do ET. À saída disse para eles: ‘Então vocês gostaram ?’. Um deles respondeu: ‘Eu gostei muito. Ele era assim bonzinho e feinho como o Siô’ »…


A IMPORTÂNCIA DA LIBERTAÇÃO HUMANA
Há dias Anselmo Borges, recordava o que Dom Hélder Câmara lhe tinha dito numa entrevista concedida em 1974 e publicada num opúsculo intitulado “Evangelho e Libertação Humana” (DN, 14.3.09): “Tudo o que for sobrecarga, laço, prisão, criados pelos homens, tudo o que for tabu, tudo isso pode e deve ser raspado, como quem raspa o fundo de um barco. Quando penso na Igreja, eu me lembro da barca, não apenas de Pedro, porque a barca é do Cristo. Precisamos de raspar periodicamente o limo que se vai juntando no fundo do barco e inclusive substituir de vez em quando alguma tábua que apodrece”. E acrescentava, significativamente, um pequeno exemplo tirado da sua vida de pastor de almas: “Eu cheguei como arcebispo a Recife, uma cidade do Nordeste brasileiro, uma das áreas subdesenvolvidas do país. Mesmo assim, eu recebi como casa uma casa já velha, mas enorme, com o nome de palácio. E dentro dele havia duas salas de trono: uma, mais solene, para as grandes recepções, e outra para o diário. Para receber todas as pessoas era um trono!… Pois bem! Eu levei seis meses para poder livrar-me da primeira sala e ano e meio para livrar-me da segunda!… Então, que cada um olhe em volta de si e veja como ainda está preso, por exemplo, pela sociedade de consumo. Como nós somos escravos da sociedade de consumo! Como é difícil arrancar-nos das estruturas!”. Mas como agir sobre a realidade que nos cerca? É fundamental compreender a importância do fermento na massa, das minorias capazes de afirmar a novidade emancipadora e de tornar a dignidade do ser algo real e actuante: “Estas minorias já existem. Precisamos de unir estas minorias que desejam um mundo mais respirável, mais humano, uni-las dentro de uma mesma cidade, de uma região, de um país, de país a país, porque hoje, sobretudo com as multinacionais, com todo o complexo de poder económico, utilizando técnicas, meios de comunicação social, infiltrando-se nos Governos, utilizando não raro militares, diante dessa força imensa, é impossível a um país sozinho construir uma sociedade mais humana”. Dom Hélder acreditava na persistência no combate pela justiça, para além das marcas ideológicas e das burocracias dominadoras: “Eu sei que há tentativas aqui e acolá, mas ainda se não chegou a um socialismo verdadeiramente humano que, longe de esmagar a pessoa, pelo contrário, de facto nos arranque das estruturas capitalistas, da engrenagem capitalista, mas não para meter-nos em novas engrenagens”. No texto que vimos seguindo, Anselmo Borges recorda que Dom Hélder foi um dos animadores do chamado “Pacto das Catacumbas” – assinado por quarenta Padres Conciliares, pouco antes do encerramento do Concílio Vaticano II (16.11.1965), nas catacumbas de Domitila em Roma. Aí se sublinhava “a pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos nem ostentações mundanas”, na colegialidade e co-responsabilidade, insistindo-se na abertura ao mundo, na transformação social e no acolhimento fraterno. “Feliz de quem atravessa a vida inteira com mil razões para viver”.


Guilherme d’Oliveira Martins


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