A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Edgar Morin é um velho amigo do CNC e nosso sócio honorário. As suas reflexões constituem peças fundamentais no pensamento contemporâneo para além das fronteiras europeias. “Mon Chemin”, que acaba de ser publicado (Entrevistas com Djénane Kareh Tager, Fayard, 2008), permite-nos conhecer melhor o autor, que nos revela na primeira pessoa, com grande lucidez, o seu percurso de cidadão e de humanista. E o mais importante é que nos fala, com grande coragem, da sua vida, das suas emoções e paixões e da sua própria experiência da vida, do amor, da poesia, da velhice e da morte. Podemos, assim, seguir uma vida que atravessou o século XX, e que viveu na carne e no espírito as angústias dum tempo de barbárie e de esperança.

A VIDA DOS LIVROS
de 2 a 8 de Março de 2009


Edgar Morin é um velho amigo do CNC e nosso sócio honorário. As suas reflexões constituem peças fundamentais no pensamento contemporâneo para além das fronteiras europeias. “Mon Chemin”, que acaba de ser publicado (Entrevistas com Djénane Kareh Tager, Fayard, 2008), permite-nos conhecer melhor o autor, que nos revela na primeira pessoa, com grande lucidez, o seu percurso de cidadão e de humanista. E o mais importante é que nos fala, com grande coragem, da sua vida, das suas emoções e paixões e da sua própria experiência da vida, do amor, da poesia, da velhice e da morte. Podemos, assim, seguir uma vida que atravessou o século XX, e que viveu na carne e no espírito as angústias dum tempo de barbárie e de esperança.



UMA VIDA APAIXONANTE
Edgar Morin (1921) nasceu no seio de uma família italiana de origem sefardita, descendente de judeus ibéricos. A sua adolescência (invocada de um modo comovente, a partir do súbito desaparecimento de Luna, a sua jovem mãe) foi muito marcada pela incerteza e pela ascensão dos totalitarismos europeus e pela génese da guerra mundial. Com vinte anos alista-se nas fileiras do Partido Comunista Francês e da Resistência gaullista, mas é no imediato pós-guerra que afirmará a sua extraordinária influência intelectual, nos diversos campos onde se lutava pela liberdade de espírito – desde a resistência ao estalinismo (o que o leva a afastar-se da opção comunista) até aos combates contra o colonialismo (com especial referência à guerra da Argélia) e as diferentes formas de totalitarismo. Se nos referirmos às suas máximas de vida, Morin confessa-se um resistente permanente “à crueldade do mundo e à barbárie humana”, onde quer que elas se situem; dizendo que recusa “sacrificar o essencial à urgência, antes obedecendo à urgência do essencial” ou que “se entrega a tudo o que dê paixão e compaixão”, sempre protegendo, na velhice, “a razão na paixão, e tendo sempre presente a paixão na razão”… Ao lermos estes diálogos, seguimos a história europeia, como uma realidade situada e individualizada, sentimos os efeitos da guerra numa família ameaçada, com um pai protector e receoso, deparamos com um jovem politizado que não dá ouvidos aos cuidados que lhe são solicitados em casa, encaramos as opções dilacerantes de um resistente (que não pode deixar de considerar o uso da força), e no pós-guerra vemos a chegada difícil da ruptura formal com os comunistas, por ocasião do caso Rajk (1949), um novo caso Dreyfus, de dimensão internacional, que pôs a nu os critérios e a discricionaridade do estalinismo. Mas esse é o tempo em que a crítica política vai permitir a solidificação de um pensamento original, em torno da complexidade, bem evidente na obra-prima “La Méthode”, que se tornaria referencial no pensamento contemporâneo.


SOB O SIGNO DE MONTAIGNE
Ao ler as entrevistas de Edgar Morin e o seu testemunho pessoal, temos de lembrar a sua preocupação, bem evidente nos últimos anos, com as repercussões educativas do seu pensamento e com a exigência da consideração dos fenómenos complexos e da sua compreensão. Como o autor de “La Tête Bien Faite” (Seuil, 1999) lembra, a partir do entendimento de Michel de Montaigne, segundo o qual mais vale uma cabeça bem feita, do que uma cabeça bem cheia: perante a expansão incontrolada do saber, T. S. Eliot perguntava “Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. De facto, as informações de que estamos cheios são parcelas de saber dispersas. Por isso, cada vez há mais um conjunto de conhecimentos que escapam ao controlo humano. E assim não conseguimos integrar os conhecimentos na condução das nossas vidas. Daí, continua E. Morin, é preciso lembrar a segunda parte da pergunta de Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?”. Eis o dilema com que nos defrontamos: a informação em excesso prejudica o conhecimento e o conhecimento apenas pode perturbar e limitar a sabedoria. Daí o triplo desafio que o escritor lança – o desafio cultural, a fim de evitar o divórcio entre cultura humanista e cultura científica; o desafio sociológico, uma vez que a informação deve ligar-se ao conhecimento, o conhecimento deve ser revisto pelo pensamento, e o pensamento é mais do que nunca o capital precioso para o indivíduo e a sociedade; e o desafio cívico, já que o saber fechado e apenas reservado a alguns exige, como antídoto, a ligação entre o conhecimento, a compreensão e a responsabilidade. Sendo assim, o desafio fundamental tem a ver com o que designa como a reforma do pensamento, que permitirá o pleno emprego da inteligência para responder aos desafios e permitir a ligação das duas culturas divorciadas, mas também entre a cultura, a educação e a vida. E a reforma do pensamento não é uma reforma programática, mas paradigmática, que respeita à nossa capacidade de organizar o conhecimento.


JANELAS ABERTAS PARA O MUNDO
É assim que a educação (como despertar e construir) e a escola devem ter as janelas abertas para o mundo, já que é a sociedade que está no centro das políticas educativas (e não este ou aquele dos actores das comunidades educativas), uma vez que é a aprendizagem de todos e para todos que está em causa. Daí que o rigor, a exigência, a disciplina sejam naturais contrapartidas da liberdade, da responsabilidade e do respeito mútuo. Do que se trata, no fundo, é de aprender a conhecer, mas também de aprender a viver. E essa aprendizagem, centrada na experiência, no exemplo e na criação, tem de partir do próprio conhecimento e da tomada de consciência dos seus limites. E as perguntas essenciais não podem deixar de ser feitas. O que é racionalidade? O que é a ciência? O que é a complexidade? O que é o humanismo? Mas importa ainda sensibilizar as pessoas (estudantes, educadores) para as ambiguidades e ambivalências, para a ecologia da acção, para o afrontamento das naturais contradições. “Trata-se de fugir ao pensamento binário e mutilador que está em toda a parte nos ordenamentos”. Responder é afrontar a incerteza, entendendo-a como característica natural das sociedades humanas, em especial na situação da nossa – em que a globalização coexista com a emergência da sociedade da informação e em que a economia do conhecimento obriga a pôr em primeiro lugar o capital humano e o capital social.. Por outro lado, Morin considera que a complexidade obriga a articular e a complementar a virtude da especialização e o risco da hiper-especialização. É importante que haja um conhecimento especializado, desde que o mesmo não conduza à fragmentação e à incapacidade de compreender o todo. E não podemos esquecer ainda a insistência fundamental de Edgar Morin nos sete pilares para uma educação contemporânea, que não poderão ser esquecidos: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; necessidade de ver o contexto e o conjunto dos problemas; ligação entre a unidade e a diversidade da condição humana; necessidade da aprendizagem da identidade planetária; exigência de afrontar a incerteza; dever da compreensão mútua; e o desenvolvimento de uma ética do género humano. 


ENTENDER AS DIFERENÇAS CULTURAIS
Mas importa entender as diferenças. Daí que a “Educação deva contribuir para a auto-formação da pessoa (aprender e assumir a condição humana, aprender a viver) e para a aprendizagem a ser cidadão. Um cidadão, numa democracia, define-se pela sua solidariedade e pela sua responsabilidade em relação à pátria. O que supõe o enraizamento em si da sua identidade nacional” (“La Tête Bien Faite”, p. 71). Mas como? Temos de partir da diversidade cultural para o respeito mútuo, num mundo de fronteiras abertas, em que o Estado-nação não pode ser o alfa e o ómega das referências identitárias. Deve ser, sim, uma das instâncias abertas de mediação, abrindo-se caminho não só a um projecto europeu, considerado como o de uma comunidade plural de destinos e valores e como o de uma união de Estados e Povos livres e soberanos, mas também à própria humanidade. “A pátria terrestre comporta a salvaguarda das diversas pátrias; estas podem muito bem enraizar-se numa concepção mais profunda e mais vasta de ‘a pátria’, na condição de estas sejam abertas, e a consciência da pertença à Terra-Pátria é a condição necessária para a sua abertura”…


Guilherme d’Oliveira Martins


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