A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Acaba de ser editado em Portugal “Istambul – Memórias de Uma Cidade” de Orhan Pamuk (1952), com tradução de Filipe Guerra (Presença, 2008), que recenseámos em Outubro de 2006 (16 a 22), aquando da atribuição do Prémio Nobel ao seu autor. Republicamos hoje o texto então produzido, revisto e aumentado por referência à edição portuguesa. Nessa altura usámos “Istanbul, Memories of a City” (Faber, 2006). Trata-se de um livro fundamental não só para se compreender a antiga Constantinopla projectada nos dias de hoje, mas também porque é uma obra-prima da literatura contemporânea – um misto de memórias, de biografia e de ensaio. Pamuk foi agraciado com o Prémio Nobel da Literatura, e a atribuição do galardão representa o reconhecimento de um escritor para quem não pode haver separação entre a vida, a arte e a escrita.

A VIDA DOS LIVROS
de 8 a 14 de Setembro de 2008


Acaba de ser editado em Portugal “Istambul – Memórias de Uma Cidade” de Orhan Pamuk (1952), com tradução de Filipe Guerra (Presença, 2008), que recenseámos em Outubro de 2006 (16 a 22), aquando da atribuição do Prémio Nobel ao seu autor. Republicamos hoje o texto então produzido, revisto e aumentado por referência à edição portuguesa. Nessa altura usámos “Istanbul, Memories of a City” (Faber, 2006). Trata-se de um livro fundamental não só para se compreender a antiga Constantinopla projectada nos dias de hoje, mas também porque é uma obra-prima da literatura contemporânea – um misto de memórias, de biografia e de ensaio. Pamuk foi agraciado com o Prémio Nobel da Literatura, e a atribuição do galardão representa o reconhecimento de um escritor para quem não pode haver separação entre a vida, a arte e a escrita.




O ASSOMBRO DA ESCRITA
Como diz Pamuk, citando Ibn Zehrani, “nada pode ser mais assombroso que a vida, salvo a escrita”. E isso mesmo se sente ao longo desta invocação de uma cidade magnífica e das suas memórias, a partir da pertença a um lugar mágico onde nasceu e onde vive, que é uma ponte entre o ocidente e o oriente, um ponto de encontro e de fronteira, no sentido mais rico do termo. E assim sente-se uma procura do sentido básico e universal da humanidade, a partir dos particularismos de uma cidade e de uma família. As imagens e as pessoas ligam-se às reflexões onde Orhan revela um espírito brilhante, preocupado com o pormenor, mas sobretudo empenhado em regressar à necessidade de defender uma cultura aberta, que não tem razões para se fechar, e que, a cada passo, revela uma capacidade significativa de universalização. “A discussão sobre se os turcos são ou não europeus é bizantina; o importante é que os turcos querem ser europeus”. E quando lemos Orhan Pamuk percebemos que “Europa” é sinónimo de cultura pluralista e aberta, de tolerância e respeito. Mais do que qualquer receita, é essencial a compreensão da vida, da prática quotidiana e do que une as pessoas. E o escritor recupera, como nos velhos contos, o modo tradicional, de pegar no leitor e levá-lo para o mundo dos enigmas e das dúvidas. O estreito do Bósforo une. A cidade, com o Palácio de Topkapi, Santa Sofia, a Mesquita Azul, o Corno de Ouro ou o Grande Bazar, o porto, os cafés, as montanhas da Ásia menor ao longe, marca a “diferença como identidade”. E Harun al-Rachid vai, como fantasma, pelas ruas a ouvir o que dele se diz… “O sonho é uma segunda vida”. A cada passo, sentimos um vai-e-vem entre a memória de um jovem nascido nos anos cinquenta numa família tradicional e as riquíssimas referências de uma cidade pela qual passou a grande História. Esse regresso à História, essa possibilidade de reconstruir a escrita através da memória permitem perceber melhor a cidade e a sua gente. A identidade de Istambul define-se, afinal, para Pamuk, como uma encruzilhada entre a cultura asiática, que vem das longínquas estepes, e a herança grega e clássica, tão próxima. A europeidade resulta assim enriquecida, mesmo que o seu pendor aberto tenha feito o autor sofrer incompreensões e amargos de boca (em especial, na defesa de curdos e arménios…). “O que hoje divide os turcos não é o dilema entre laicismo e islamismo – a nossa principal fractura interior é a muito injusta distribuição da riqueza” – disse Pamuk. Um nível de vida digno das pessoas e um Estado democrático respeitável, eis o que devem ser objectivos de uma Turquia moderna, onde todos possam sentir-se em sua casa. Assim se contrariará o fanatismo e se incentivará uma visão corajosa e compassiva do mundo. E o escritor perscruta a existência humana, entre a angústia e o desespero, na recordação da decadência da “Grande Porta”, mas também no apelo positivo das lembranças e das invocações amenas do amor, da beleza e da esperança… Há uma procura constante da liberdade, da dignidade e do universalismo na visitação da memória.


UMA OBRA TESTEMUNHAL
“Istambul” retoma o que encontrámos em “Os Jardins da Memória” (“Kara Kitap” ou “Livro Negro”, tradução de Miguel Serras Pereira, Presença, 2002). E o certo é que a memória é uma excelente matéria-prima, talvez a única que permite combater a indiferença e o esquecimento. Deparamos, pois, com um visitante por que há muito esperávamos, e o livro lê-se de um modo apaixonado. O mundo dos afectos aparece a cada passo. As relações com o pai, com a mãe e com o irmão mais velho são difíceis. Sabe-se que a mãe acolheu muito mal esta obra. A admiração pelo pai, já falecido, é evidente. Aquele grande casarão familiar onde tudo se passa é a representação do mundo. E o que sentimos é uma relação contraditória, de apego e de recusa, de perplexidade e de íntimo prazer. Os fracassos contínuos nos negócios da família, as discussões entre o pai e a mãe, as fricções familiares, levaram Orhan a compreender que “a vida tanto era feita de acontecimentos divertidos – os prazeres que descobria todos os dias, um após outro (o desenho, a sexualidade, a amizade, o sono, ser amado, comer, brincar, contemplar, etc.) – e de inesgotáveis possibilidades de felicidade, como era composta de catástrofes, das mais insignificantes às mais graves, dessas que se manifestam de repente e depois se propagam, atingindo proporções inesperadas”. Mas da família, chega-se à civilização. “Na minha infância interessava-me muito pouco por Bizâncio, como, de resto, a maioria dos turcos de Istambul. O nome Bizâncio evocava-me nessa época as barbas e as roupas assustadoras dos padres ortodoxos, os arcos bizantinos espalhados pela cidade, as velhas igrejas de tijolo vermelho e Santa Sofia. Aliás tudo isso era tão antigo que passávamos bem sem o conhecer. Os próprios otomanos que tinham conquistado e posto termo ao Império Bizantino já pareciam, por sua vez, muito longínquos”. O meio familiar de Orhan era favorecido e culto, ocidentalizado, laico, republicano e kemalista. Sentimos, por isso, que as preocupações sentidas pelo autor podiam perfeitamente ser as nossas, de ocidentais. Na visita a uma mesquita diz: “Pois bem, verifiquei, uma vez mais, que a religião era coisa de pobres, mas, ao contrário das caricaturas dos jornais e do ambiente republicano que reinava lá em casa, fiquei convencido de que os crentes eram pessoas inofensivas”. O sentimento de culpa sente-o, contudo, por referência à comunidade, a tensão metafísica entre a crença e o sentimento de pertença dá lugar à curiosidade e à perplexidade face, por exemplo, à sexualidade. A imagem que faz de Deus é a de uma mulher, velhíssima, de branco, que não deseja importunar, por ter a providência mais a ver com os pobres. “Não obstante, de cada vez que, no meio da multidão, num barco ou numa ponte passo por uma velha metida numa longa veste branca, estremeço”.


UM PERCURSO INTERESSANTE
Vamos acompanhando o relato, com uma grande curiosidade. Lemos a crónica de uma família turca de Istambul, que, apesar das dificuldades (e das vicissitudes económicas), nos permite ver que os valores da modernidade estão bem presentes – mesmo num tempo em que o próprio escritor se vê ameaçado e perseguido por ser fiel à tradição aberta que viveu toda a vida. O livro é profusamente ilustrado, com fotografias belíssimas, gravuras e recortes, que nos revelam nas palavras e na imagem uma sociedade pela qual temos uma especial curiosidade. E o certo é que, com esta obra, Pamuk contribui (como muito poucos) de um modo brilhante para afirmar uma faceta moderna e europeia da sociedade turca. O escritor (que na infância imaginava um outro Orhan a viver uma outra vida algures na sua cidade) aprecia muito olhar discretamente para o interior das casas através das suas janelas iluminadas de uma cor alaranjada ao passear na rua ou à janela de sua casa. A cidade de Istambul do livro é vista dessa maneira. De dia as janelas projectam o Bósforo, de noite são o reflexo das casas de cada um. E percebe-se o fascínio que a “Enciclopédia de Istambu” de Resat Ekrem Koçu exerceu sobre o jovem Orhan, na biblioteca de sua avó, paterna – um livro ilustrado, “um rol estranho, pasmoso, assustador, até repugnante, de bizarrias, de acontecimentos, de personagens insólitos”.


Guilherme d’Oliveira Martins

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