A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Cento e vinte anos depois do nascimento de Fernando Pessoa (1888-1935) podemos dizer que o autor dos heterónimos se tornou um mito cultural na Europa contemporânea. Apesar de ter morrido praticamente esquecido, o certo é que se impôs, de um modo fulgurante e surpreendente, como um símbolo e um intérprete excepcional e fidelíssimo de um século paradoxal de violências e suspeitas. Hoje escolhemos o “Livro do Desassossego” de Bernardo Soares (Edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, 1998) como pretexto para uma glosa que pretende interpretar a razão de ser deste carisma póstumo, que tornou Pessoa hoje, surpreendentemente, porventura mais vivo do que quando existiu fisicamente.

A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de Junho de 2008
 


Cento e vinte anos depois do nascimento de Fernando Pessoa (1888-1935) podemos dizer que o autor dos heterónimos se tornou um mito cultural na Europa contemporânea. Apesar de ter morrido praticamente esquecido, o certo é que se impôs, de um modo fulgurante e surpreendente, como um símbolo e um intérprete excepcional e fidelíssimo de um século paradoxal de violências e suspeitas. Hoje escolhemos o “Livro do Desassossego” de Bernardo Soares (Edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, 1998) como pretexto para uma glosa que pretende interpretar a razão de ser deste carisma póstumo, que tornou Pessoa hoje, surpreendentemente, porventura mais vivo do que quando existiu fisicamente.



UM AJUDANTE DE GUARDA LIVROS
O autor do “Livro do Desassossego” foi muito próximo de Fernando Pessoa, talvez o mais próximo de toda heteronomia (“Serei uma nação?”), a ponto de ser difícil fazer uma distinção clara, como acontece com Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou Ricardo Reis, criados, ao que tudo leva a crer, um ano depois de Bernardo Soares (1913), que aqui encontramos. E o certo é que este guarda-livros escreve uma obra que reúne textos que, muitos deles, fazem parte do património mais vasto do próprio Fernando Pessoa e da sua extraordinária capacidade efabulatória. No dizer de Richard Zenith: “Viver sonhando, sonhar imaginando, imaginar sentindo – era este o credo que ressoava em quase todos os cantos do universo pessoano, mas Soares era o exemplo mais prático disto. Enquanto as outras estrelas heteronímicas falam de sonhar e de sentir tudo, Bernardo Soares sonha e sente ‘realmente’, diariamente”. E o próprio Fernando Pessoa, ao apresentar-nos este singular amigo fá-lo sem outras considerações que pudessem apontar para a sua excepcionalidade. Estamos assim perante alguém que usufrui de um especial mimetismo relativamente ao poeta de “Mensagem”. “Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como eu perscrutando-as, mas como eu interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse o traço curioso que primeiro me deu interesse por ele”.


“FUI O ÚNICO…”
“Fui o único que estive na intimidade dele” – diz-nos o próprio Fernando Pessoa, revelando, afinal, essa simbiose íntima que ligava a personagem real ao seu alter ego. E é a partir daqui que temos de ler e de compreender tudo o resto, numa obra (laboriosamente reconstruída) que não se resume, nem se pode encerrar em qualquer simplificação analítica. Propositadamente, Bernardo Soares está por detrás de um verdadeiro caleidoscópio, permanentemente mutável, em busca da apreensão das diversas perspectivas da consciência. E é isto mesmo que torna este livro surpreendente e fascinante, pois nunca nos mostra a mesma imagem de ontem, nem qualquer antecipação da de amanhã. “É esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei outro”. Mas como é esse universo estranho da Rua dos Douradores? Bernardo Soares vê aí, vive aí, exerce aí o seu pensamento, funciona aí. “Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim”. E que é viver senão tomar contacto com esses pequenos nadas? O sonho e a realidade estão sempre presentes, neste labirinto, cuja saída é procurada, com avanços e recuos, com dúvidas e hesitações, nesta “autobiografia sem factos”: “Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo”.


QUE LUGAR BIOGRÁFICO?
António Quadros disse que o “Livro do Desassossego” descreve “os pequenos mundos banais da sua existência quotidiana, marchando anónimo nas artérias populosas da cidade”. De facto, Bernardo Soares dedica-se a olhar o que o cerca, com aparente simplicidade, mas procurando sempre compreender melhor a realidade humana. E que vemos, a cada passo? Aquilo que poderíamos ter pensado, ou que pensamos, mesmo que fugidiamente. “Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar”. Daí as mil contradições, do tal caleidoscópio, cujas formas mudam permanentemente. “Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso. Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez outras dimensões onde viveremos outras coisas igualmente reais de nós. Apraz-me às vezes deixar-me possuir pela meditação inútil do ponto até onde esta investigação pode levar”. A consciência inquieta manifesta-se, momento a momento, dizendo-nos Bernardo Soares o que poderíamos ser nós a pensar, e às vezes hesitamos em exprimir. Daí a sua força e pertinência, pois somos confrontados com o processo concreto de aproximação ou de afastamento relativamente à verdade.


COMO EM NIETZSCHE…
Permitindo entendermos melhor esse processo complexo, Eduardo  Lourenço, no seu sempre lembrado “Pessoa Revisitado”, fez o confronto de Pessoa com o mestre de “Assim Falou Zaratustra”: “Como em Nietzsche a sua titânica ambição foi a de trocar os sinais aos valores que servem de referência ao mundo moderno. Mas ao contrário de Nietzsche, não encontrou razões últimas para preferir uma coisa à outra e em vez do seu ‘sim’ sem reticências à vida na sua plenitude ausente de finalidade humana, Pessoa mais não pôde que aspirar a esse mesmo ‘sim’ como forma de redenção do seu sentimento irredutível de inexistência própria e de universal inconsistência dessa mesma vida”. A verdade é que a cada passo é isso se sente no “Livro do Desassossego”, compreendendo-se, afinal, que Bernardo Soares vive paredes-meias com Fernando Pessoa, convivem no mesmo espaço, com as mesmas preocupações e a sua consciência é permanentemente partilhada. E, deste modo, para Pessoa a Humanidade não poderia ser sucedâneo de Deus, haveria, antes, que considerar os dois termos do problema, sem abandonar a capacidade de glorificar e de adorar, mesmo que se referisse a um Deus improvável. Daí encontrarmos resquícios, aparentemente contraditórios, de paganismo, de indiferença e de religiosidade, tal como no tempo de hoje, nas sociedades em que vivemos.


CAPACIDADE DE ANTECIPAR
Bernardo Soares tem, por isso, uma mágica possibilidade de viver antes. E que é a vida para ele? “A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas”. Soares interroga-se permanentemente sobre esse estranho diálogo de fronteiras imprecisas entre o sonho e a realidade, entre as ideais e as coisas, entre o corpo e a alma. Essa é a chave da sua originalidade, que obriga Fernando Pessoa a cultivá-lo, ora com personalidade própria, ora como cobaia da sua perspectiva individual sobre o mundo e tudo o que o compõe. «O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito. Quem está no canto da sala dança com todos os dançarinos. Vê tudo e porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade é uma sensação nossa, tudo vale o contacto com um corpo como a visão dele, ou, até a sua simples recordação (…) Digo, como um poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe três ceifeiros: ‘Um quarto está ceifando, e esse sou eu’»


E oiça aqui as minhas sugestões na Renascença


Guilherme d’Oliveira Martins

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