A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

“DE LA BIBLE À KAFKA” de George Steiner (Hachette, 2002) reúne um conjunto de ensaios que têm em comum a referência à Bíblia, desde a relação quase paradoxal entre o Antigo e o Novo Testamento às interrogações em torno de obras tão diversas como as de Kierkegaard, Husserl, Simone Weil, Charles Péguy e Kafka.

A VIDA DOS LIVROS
De 29 de Outubro a 4 de Novembro de 2007


“De la Bible à Kafka” de George Steiner (Hachette, 2002) reúne um conjunto de ensaios que têm em comum a referência à Bíblia, desde a relação quase paradoxal entre o Antigo e o Novo Testamento às interrogações em torno de obras tão diversas como as de Kierkegaard, Husserl, Simone Weil, Charles Péguy e Kafka.



Rembrandt 
“Abraão sacrifica Isaac” (1634)
Hermitage, S. Petersburgo.


DIFERENÇAS E COMPLEMENTARIDADES 
O autor tece a sua reflexão preocupado com a articulação entre as fontes grega e judaica do pensamento ocidental, alcançando um resultado muito estimulante, em que a erudição se alia a uma arguta procura de novas pistas de compreensão. Steiner vê-se, porém, confrontado com antigas tensões e contradições, e na perspectiva judaica procura aplainar arestas, suspeições e ressentimentos, agravados pelas incompreensões do tempo e da história. E interroga-se em especial sobre as razões que levaram o judaísmo a resistir à mensagem cristã de consumação da vinda do Messias tal como profetizado no Antigo Testamento. Procura, por isso, várias explicações e conclui sobre a necessidade de preservar as duas facetas, da Torah e da Boa Nova, em nome não só de uma continuidade entre Moisés e Cristo, mas também da preservação, pelo contraste e pela diferença, da vitalidade de Israel como um todo. “E se dúvidas houvesse sobre a exigência dessa interdependência basta lembrar como na Idade Média o Islão, o judaísmo e o catolicismo se encontraram e se entrecruzaram e entrelaçaram”. Como demonstrou Etienne Gilson, Maimónidas leu os textos sagrados à luz de Avicena, e Tomás de Aquino leu-os através de Maimónidas e dos seus predecessores árabes.


ENRIQUECIMENTO MÚTUO
Há assim um diálogo que procura um enriquecimento mútuo, entre valores e tradições comuns, para além das barreiras e das acusações. E pode ler-se com uma coerência que compreende as várias culturas que se alimentam dessa leitura, por exemplo, a passagem do Êxodo que afirma: «Deus disse então a Moisés: ‘Responderás o seguinte: – Eu sou Aquele que sou’. E acrescentou: ‘Assim falarás aos israelitas’». Perante a “grande tautologia” houve que encontrar uma chave comum que pudesse revelar o sentido profundo de uma identidade perfeita em si mesma, e eis-nos diante do essencial do debate teológico e filosófico do Ocidente. Estamos, no fundo, em face da interacção entre o neo-platonismo, o conceito joanino de logos e os problemas, lógicos e epistemológicos, colocados pelas concepções trinitárias. E George Steiner lembra-nos a cantilena infantil, que resume, afinal, este tema tão complexo – “one is one and all is all and evermore shall be so” (um é um, tudo é tudo, e será sempre assim). Mas, a partir das diferenças e das complementaridades, como preparar uma “humanidade mais humana”? Como lidar com a memória sem que ela sirva para elevar barreiras intransponíveis?


ENTRE A CULPA E A RESPONSABILIDADE
“O mais sobriamente inspirado de todos quantos, no século XX, imaginaram Deus, Franz Kafka, teria dito: ‘Há abundância de esperança, mas ela não é para nós’. O que podemos fazer é tentar entender do interior desta abdicação do messiânico, quer seja judeu quer seja cristão, a promessa de uma estranha liberdade”. Temos, assim, de deixar o método da acusação histórica, assumindo a necessidade de percebermos que precisamos uns dos outros, e que a complementaridade pode ser libertadora. E como poderemos encarar a barbárie do século XX, os campos de extermínio, a “solução final”, se não percebermos a “presciência, em ‘O Processo’ (de Kafka), do inferno da burocracia moderna, da tortura e dos anonimatos da morte característicos dos regimes totalitários do século XX”? Mais do que lermos as palavras de Kafka, a verdade é que elas nos lêem, encontrando-nos vazios, entre a acusação e a culpa. E se se fala de culpa, não podemos esquecer que Sócrates não abandonou a cidade em nome do acto pedagógico supremo, de uma lição extrema de liberdade, colocando a cidade perante a sua própria culpabilidade que resultou da sua condenação injusta. E é esse sentido de uma responsabilidade livre que Steiner invoca quando lembra os exemplos de coragem e de espiritualidade enraizada de Péguy ou de Simone Weil. E no final, num ensaio luminoso intitulado “Nossa Pátria, o Texto”, sobre a pátria de Israel, afirma: «Enfermé matériellement dans une patrie matérielle, le texte risque bel et bien de perdre sa force vitale, de voir trahies ses valeurs de vérité. Mais quand le texte est la patrie, même quand il est enraciné uniquement dans la remémoration exacte et la quête d’une poignée de vagabonds, les nomades du mot, il ne saurait s’éteindre. Le temps est le passeport de la vérité, sa terre natale. Quel meilleur logis pour le juif ? ».


GEORGE STEINER EM LISBOA
Na lição inaugural da Conferência da Gulbenkian “A Ciência terá limites?” Steiner, falou na semana que passou, do excesso da especialização dos cientistas como um entrave à comunicação mesmo entre os investigadores que trabalham em domínios muito próximos. E lamentou a existência de um fosso entre os cientistas e as comunidades a que pertencem. Os cientistas “ainda não perceberam que têm mesmo de gastar algum tempo a tentar estabelecer essa ponte”. Por outro lado, acusou a complacência das sociedades ditas desenvolvidas com um assustador grau de “inumeracia” da quase totalidade dos seus habitantes. Essa ignorância tem implicações desastrosas, já que os avanços na biologia molecular, na bio-genética ou na neuro-química vão ser afectados irreversivelmente. E lembrou ainda os teoremas de Goedel que postulam que nenhum sistema pode fundamentar-se a si próprio e que em todos os sistemas haverá sempre proposições que podem ser validadas e negadas…


MAIS ENSINO DA MATEMÁTICA 
“Tragam-me cinco alunos de meios desfavorecidos e eu mostro-lhes”. Steiner desafiou a assistência e exemplificou com a identificação de números naturais e de números primos para se poder entender o conhecimento e a infinitude… Paguem-se bem os professores de matemática, recupere-se o prestígio da matemática! Desde os primeiros graus da escolaridade incentive-se o ensino de qualidade da matemática e a ciência e a sociedade beneficiarão!


LIVROS DA SEMANA
Dois conselhos imperdíveis: Catálogo da Exposição “Arte e Cultura do Império Russo nas colecções do Hermitage, de Pedro, o Grande, a Nicolau II” e “Cesário Verde” de Maria Filomena Mónica (Alêtheia).

E oiça aqui os meus conselhos da semana na Renascença.


Guilherme d’Oliveira Martins

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