A Vida dos Livros

De 10 a 16 de setembro de 2018

O códice número 477 da Biblioteca Nacional de Portugal, intitulado “Crónica de El Rei Dom Sebastião, Décimo Sexto Rei dos de Portugal na qual se contém, por maior, os sucessos do seu Reinado e vida”, da autoria de Miguel Pereira (1584), constitui o mais antigo relato sobre a vida e reinado de D. Sebastião que chegou até nós.

UM TEXTO IMPORTANTE
Até ao momento contávamos, além de obras esparsas, como a Crónica de Bernardo da Cruz (1586), podendo ainda referir-se o controverso texto de Girolamo Franchi Cosnestaggio (1585) e a brevíssima relação da Batalha de Alcácer-Quibir de Goes Loureiro (1595). Recorde-se que a Crónica de Frei Bernardo da Cruz, frade menor e capelão-mor da armada de D. Sebastião, que não há certeza de presenciado a batalha, foi publicada pela primeira vez por Alexandre Herculano em 1837. O manuscrito que serve de base à publicação da presente obra é de 1795, sendo uma cópia de outra anterior, que se diz ter sido “tirada fielmente do original”, sendo segundo testemunho do copista, a que Barbosa Machado encontrou ou viu na Biblioteca do Duque de Lafões. A Crónica, como é fácil de ver, corresponde a um roteiro que deveria ter sido escrito para ulterior desenvolvimento, dado o teor parco dos textos. O seu interesse assenta, contudo, no facto de haver uma indicação suficientemente precisa do conteúdo essencial. É certo que faltam pormenores, mas deparamos com a base fundamental que nos permite compreender o curso dos acontecimentos. Não nos fazem falta as considerações pessoais que se adivinham. O texto cobre 59 capítulos curtos, onde se referem os elementos mais significativos da vida do Rei Desejado. Os primeiros 14 capítulos referem-se à regência de D. Catarina, viúva de D. João III, com as vicissitudes conhecidas, e à do Cardeal D. Henrique. Fala-se depois do cerco de Mazagão e do seu levantamento, da chegada ao trono do jovem monarca, de diversas medidas de governo adotadas, designadamente no tocante à desvalorização da moeda (abatimento às valia dos patacões), à evolução legislativa e judiciária, à grande peste (1569), às intervenções militares em África (como em Monomotapa), ao cerco de Goa e Chaul, à exploração das Minas de Achém em Angola, à ida do rei a Ceuta e Tânger, à crise económica e às fomes em Entre-Douro-e-Minho e Beira, até ao embarque do Rei para Alcácer-Quibir. Fica claro que Filipe II de Espanha, tio do Rei, tentou por diversos meios demover D. Sebastião da empresa de África, pedindo mesmo ao Duque de Alba, D. Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, que enviasse um parecer circunstanciado sobre os perigos da guerra. Afinal, apesar da vitória dos cristãos na Batalha de Lepanto sobre os turcos, a conjuntura apresentava-se largamente desfavorável relativamente a uma intervenção em Marrocos, como veio a acontecer. O Rei persiste no intento, procurando mobilizar a fina-flor da nobreza – que, em grande maioria, sente no íntimo que se trará de uma aventura perigosa. Prevalece a ideia da pouca ponderação do monarca. A posição do Cardeal D. Henrique não oferece dúvidas, sendo claramente contrária ao projeto.

A PARTIDA PARA ÁFRICA
Até que finalmente na manhã do dia de S. João de 1578 ocorre a partida, com perto de mil velas em que entravam Galés e Galeões, Naus, Caravelas e “outras embarcações de toda a sorte, vela e remo”. Se a racionalidade vê com reserva a empresa, o aventureirismo excede-se em número e dimensão, o que também não facilitou a criação de condições favoráveis. Estava-se no verão, as condições atmosféricas eram desfavoráveis, pelo extremo calor, que reduzia drasticamente a eficácia das tropas mobilizadas. Na descrição rápida de que dispomos, depressa percebemos que tudo se encaminha para um desastre. Após 4 ou 5 horas de combate intenso, verifica-se a completa derrota dos exércitos de D. Sebastião e do seu aliado Abu Addallah Mohammed II Saadi (Mulei Mohammed) com quase 9 mil mortos e 16 mil prisioneiros, nos quais se inclui grande parte da nobreza portuguesa. A batalha ficaria conhecida como “dos três Reis”, todos mortos. D. Sebastião, ao finar-se, abriu de imediato uma grave questão dinástica. A morte deu-se em combate, tendo o seu corpo sido reconhecido por um grupo de nobres portugueses. Abu Abdallah Moahmmed II morreria afogado no rio Mocazim (Mekhazen) e, em sinal trágico, o vencedor da contenda Abdal-Malik I Saadi (Mulei Moluco), tio do aliado de D. Sebastião, também se finaria durante a batalha, uma vez que a sua saúde já era muito precária, tendo mesmo sido obrigado ao esforço de aparecer montado no seu cavalo antes da batalha, numa demonstração inútil de autoridade. Esta morte abriria caminho ao reinado de Amade Almançor Saadi (1578-1603). Precocemente desaparecido aos 24 anos, D. Sebastião é descrito como homem de estatura média, “alvo, loiro e, em boa maneira afigurado, dobrado em carnes e de grandes forças”. Sem grande pormenor e originalidade, a figura do rei é enaltecida pela elegância – “airoso a pé e muito a cavalo, principalmente à gineta, tomava lança com tanto ar, e seguro na sela, que obrigava a quem o via folgar de o imitar”. Trabalhador, determinado, “atrevido mais do que convinha a Rei”. Como caçador era, no entanto, imbatível, e ninguém ousava concorrer com ele. Nos amores, nada se lhe conhece. “Foi tão casto e honesto, que nunca lhe sentiram juntar-se com mulher, nem se inclinar à Damas do Paço no modo que nos Príncipes se permite e lhes é dado”…

MAUS AUGÚRIOS
Mas, ao autor não escapa o mau agoiro que rodeia a preparação da batalha. Dir-se-ia que tudo apontava para o desastre. E que sinais foram esses? A passagem de um cometa, o fogo ateado nas tercenas da pólvora, os sinais proféticos aparecidos em Trancoso, um ano antes, com a representação de gente de guerra, tal como se referia o livro dos Macabeus. Se tudo isto não fosse já suficientemente perturbador, ainda havia referência ao texto de S. Lucas sobre os desenganos da guerra, texto da liturgia diária da Missa celebrada perante o Rei. Ainda por cima, o Alferes-Mor encarregado de trazer o estandarte, embicou com ele de modo que “foi causa da bandeira se inclinar de má feição”, ainda que não caísse. Tudo eram sinais perturbadores que culminariam no facto da Galé onde estava El-Rei, apesar do mar quieto, ter sido abalroada por outra embarcação, tendo-lhe quebrado o esporão. Maus agouros acumularam-se. É certo que o autor procura evitar essas considerações pagãs, mas a verdade que não passam despercebidas, como maus augúrios, devendo-se haver “por admoestações e avisos certos”.  

O SIGNIFICADO DO MITO…
O sebastianismo, analisado criticamente, tem sido considerado uma «prova póstuma da nacionalidade». Contudo, fácil é de entender que o sebastianismo não é de compreensão fácil. Pode ser visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso é o símbolo de uma história complexa que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Qual a relação entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro? Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente. E é assim que Portugal aparece como «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Interrogando-se sobre os mitos portugueses, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, uma vez que considera, com Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não pode confundir-se com a incapacidade de espera. E o certo é que o autor de “Portugal Contemporâneo” sempre se dispôs a crer em uma «Vida Nova», capaz de fazer regressar a pátria a um caminho de vontade e prosperidade. Ao contrário do que se exigiria, o sebastianismo, como mito, é uma prova póstuma da nacionalidade, mas também sonho ou vaga esperança messiânica – e neste ponto o ensaísta contemporâneo chega a Fernando Pessoa. E o poeta pensa no mito cultural como impulso libertador. No pensamento de Eduardo Lourenço estamos perante um «mito», mas não uma esperança de índole transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que se apresenta – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda. E o tema do herói merece atenção. Por contraponto a D. Sebastião, há Nun’Álvares, os Filhos de D. João I e o Príncipe Perfeito. Contra o fatalismo, surge a vontade de Herculano temperada pela índole coletiva. Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, de Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo procurou ancorar nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar a Dezembro de 1640.Lembramo-nos do Quinto Império de Vieira ou de Pessoa e é de um Império espiritual e cultural que se trata. Entrando de pleno no mundo dos mitos, Eduardo Lourenço chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos, com clareza, que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que tinham conduzido a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho». E, deste modo, a propósito do «Desejado», Lourenço regressa à sua leitura histórica fundamental – da natureza imperfeita de Portugal como cais de partida e de chegada, do regresso ao infante D. Pedro das Sete Partidas, da compreensão da Europa como lugar de ambição mais amplo do que as suas fronteiras e de um universalismo heterogéneo de uma lusofonia de grandes diferenças e complementaridades, que obriga a entender os mitos e essa ligação extraordinária de reminiscências vicentinas de Todo o Mundo e Ninguém, metáfora de um império que se fez mundo fora na reunião de condições inesperadas e impossíveis, e de que o mais adequado símbolo é o herói picaresco por excelência da nossa literatura, Fernão Mendes Pinto.

Guilherme d’Oliveira Martins
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