A Vida dos Livros

De 6 a 12 de agosto de 2018.

«Memórias Secretas»de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) encadeia textos inesperados, onde se dá vida a personagens célebres da Banda Desenhada (BD).

FAZER REVIVER OS HERÓIS

São três documentos publicados, que têm autonomia e vida própria e, sem uma única ilustração, dão vida a personagens de ilustração, para além do que seria esperável. De facto, não são glosas das aventuras que conhecemos as que verdadeiramente estão em causa, mas um outro lado dessa vida que entusiasma os cultores da nona arte, para usar a classificação de Ricciotto Canudo. Hugo Pratt, de quem iremos falar, referia a “literatura desenhada” e quando comecei nestas andanças falávamos de Histórias aos Quadradinhos (HQ). Com o meu amigo e mestre José Ruy, andamos por vezes às voltas sobre a melhor designação. Mário Cláudio consegue um verdadeiro milagre – faz-nos entrar em pleno no tema e põe-nos perante a literatura, que afinal é madre de tantas cousas. E devo dizer que me deleitei deveras nestas viagens para além do que já se sabia sobre estas personagens a quem Memórias Secretas dão vida. E vieram naturalmente à memória Max e Moritz, o impagável Yellow Kid, os Sobrinhos do Capitão, o Little Nemo e os seus sonhos inverosímeis, as viagens de Becassine, os pioneiros Quim e Manecas de Stuart (que chegaram à minha geração no saudoso “Cavaleiro Andante”), além de Zig e Puce, Tintin, Blake e Mortimer e tudo o mais… Limito-me a escrever ao correr da pena, pois o tema é inesgotável. E lembro “O Mosquito”, “O Papagaio”, “O Senhor Doutor”, o “Mundo de Aventuras”, “O Diabrete”, “Cavaleiro Andante”, “Foguetão”, “Zorro”, “Tintin”… e nomes essenciais como Rafael Bordalo Pinheiro, Cottinelli, Emmérico, Botelho, Júlio Resende, Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, José Garcês, José Ruy, Vítor Péon, Adolfo Simões Müller, ou ainda Maria Teresa Andrade Santos (Mitza), Maria Isabel Mendonça Soares, além da célebre “tribo dos pincéis” (Roque Gameiro e Martins Barata)… Quantos nomes esquecidos. Mas ficamos gratos a Mário Cláudio por ter podido suscitar estas lembranças.

FANTASMAS OMNIPRESENTES

É um mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. Falamos da Sereníssima República dos Doges – Veneza, naturalmente. E entre Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece-nos o improvável Corto Maltese, que Mário Cláudio, como eu próprio, só conhecemos tardiamente por não ter feito parte da nossa infância, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt deu-lhe corpo e história. Mas a verdade é que o adotámos como mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência atribulada de um português célebre mas controverso, o Grão-Mestre Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773), em honra que quem Qormi em Malta se designou como Cittá Pinto. Lembremos os outros três Grão-Mestres: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de um grave acidente de saúde, pela sedutora Severiana, mãe da avó de Corto, Maria de los Milagros – não fadada para as glórias que seu pai gostaria de lhe ter reservado, em virtude do sucessor de Pinto da Fonseca ter posto fim a um tal sonho, arredando-a de quaisquer honras. E assim pudemos descobrir a estirpe portuguesa de Corto, que ganhara tal nome dada a exiguidade do seu corpo à nascença – por ser curto. Novas luzes podemos ter, nesta leitura de Memórias Secretas – e talvez compreendamos melhor um fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu, a cujo epílogo não chegaria… E como chegou a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja – que, contra ventos e marés, decidiram apostar em Corto Maltese. Dir-se-ia que agora Mário Cláudio legitima essa escolha e completa-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas agora vamos adiante… Não desapareceu então. A 3 de novembro de 1941, apesar da guerra sangrenta, arrendou uma casinha na Ilha de Burano mesmo defronte do Adriático, onde também moram, com Maltese, Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais mistério, porque também aqui o testemunho do herói termina abruptamente.

DO PRINCIPE VAENTE A CASTAFIORE

Há um momento em que graças à natureza desta arte nona, Bianca Castafiore irrompe no testemunho de Maltese, numa missiva enviada de Lisboa por Pandora Groovesnore, que perdera o marido, rico herdeiro de armadores e médico voluntário da Cruz Vermelha na batalha de Sicília… Bianca (Castafiore, claro) afirma-se satisfeita por aqui estar, mas não esquece toda sua a petulância e antipatia, de que são vítimas Haddock (em cujo nome a diva nunca acerta) e o próprio Hergé, pela insistência nos traços caricaturais. E descobrimos um abundante repertório para além de querido Gounod e das tranças de Margarida na “Ária das Joias” do “Fausto”. E, muito mais do que a Sildávia e Klow, o que aparece é a Europa em plena guerra, com a angústia de quem foge e a soberba de quem detém o efémero poder do tempo. O encontro com Mussolini explica muita coisa. Subitamente é Portugal que surge nas noites do S. Carlos de Lisboa. Castafiore é, por exemplo, Sélika de “L’Africaine” de Meyerbeer, numa peça em que os portugueses e Vasco da Gama se evidenciam. Até Corto Maltese aparece… Ah! temos os éclairs e babás, merengues e duchesses que lhe “encheriam as medidas”, com heroicos quatro quilos a mais. E Bianca torna-se paradigma de certos panegíricos que se aproveitam das dificuldades momentâneas e as confundem com momentos de glória, quando, de facto, do que se trata é de uma sucessão de momentos sombrios. A terceira parte leva-nos até ao “Príncipe Valente nos Dias do Rei Artur” de Harold Foster, que começou a publicar-se nos Estados Unidos em 1937 – e que Mário Cláudio descobriu em tiras em “O Primeiro de Janeiro” (a partir de 1959), sendo que antes fora em “O Mosquito” que primeiro apareceu em Portugal (1948), seguindo-se os continuados do “Mundo de Aventuras”. O protagonista é filho do rei de Thule, lugar mítico do norte europeu que vai até Camelot. A reconstrução da História baseia-se em Geoffrey Art, o cronista de Thule. As aventuras não se limitam ao cenário de Camelot ou Avalon, referem-se à transição para o período medieval. Reino expectante, enigmas do tempo, ilhas de Bruma. O Príncipe Valente torna-se cavaleiro da Távola Redonda, encontra Merlin, Lancelote, a rainha Genebra, numa glosa da História das Guerras do Imperador Justiniano, de Procópio de Cesareia. Mas não é a escrita que interessa, e sim a imagem fulgurante. Sente-se o nosso fundo céltico, tão presente em D. Sebastião… 

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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