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Temos de ser menos passivos quanto ao património, defende Guilherme d’Oliveira Martins

“Se há dúvidas quanto a um bem, guarde-se.” É esta a posição do Comissário Nacional do Ano Europeu do Património e autor do recém-lançado “Ao Encontro da História – O Culto do Património Cultural”.

Em entrevista à Renascença, diz-se preocupado com o que o Eurobarómetro aponta: que os portugueses têm consciência da importância do património, mas que mesmo assim não o visitam.

“Ao Encontro Da História – O Culto do Património Cultural” é um livro que lança várias reflexões sobre o património, a nossa herança, como a preservamos. É um livro que chegou às bancas na sexta-feira, da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, jurista e administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian desde novembro de 2015, que foi escolhido pelo Ministério da Cultura para ser o Comissário Nacional deste Ano Europeu do Património.

Com o seu novo livro, pretende chamar a atenção para a importância do património cultural, “não como uma realidade do passado mas como uma realidade bem presente”, sublinha em entrevista à Renascença.

Um estudo recente sobre esta matéria conduzido pelo Eurobarómetro é, simultaneamente, otimista e pessimista no que toca a Portugal, avança. “Otimista na medida em que revela que os portugueses têm consciência da importância do património”, mas pessimista porque, apesar de terem essa noção presente, os portugueses não gozam do património, “não visitam museus, não participam ativamente na defesa nem na salvaguarda do património”. Como resume d’Oliveira Martins, “há uma certa passividade”.

Para a combater, o comissário apresentou uma proposta “que foi muito bem recebida em Bruxelas” e pelos seus colegas de outros países. A ideia: “Este Ano Europeu do Património não pode terminar no dia 31 de dezembro, nem pode ser um ano temático. Devo dizer que é o único ano temático que este mandato da Comissão Europeia decidiu. Não basta e por isso é há duas questões muito importantes.”

A primeira é o que diz ser “a mobilização da cidade civil em torno da defesa e salvaguarda do património”. “Nós temos de perceber que, se há património em perigo, antes de mais devemos tomar imediatamente algumas medidas de proteção”. A segunda, a seu ver, é a importância de “envolver as escolas, as crianças e os jovens” nestes esforços de preservação e vivência do património. “Tive uma recetividade muito boa do Ministério da Educação, da parte da rede das bibliotecas escolares e também do Plano de Leitura. O nosso objetivo é lançar sementes para que a seguir esta seja uma questão que nós reconhecemos como importante.”

Desta forma, defende, “não ficarmos mais na situação absurda de que somos os primeiros no reconhecimento da importância do património mas os últimos na participação concreta, na ida aos museus e envolvimento efetivo com o património”.

O que tem falhado nesse usufruto do património?

O que tem falhado tem que ver com a sensibilização, informação e conhecimento. Uma das propostas que faço neste livro é do reforço do ensino da História e simultaneamente um conceito amplo das Humanidades – que articulem a educação, ciência e cultura. As humanidades não são só a literatura. Ainda há dias evocava o António Tabucchi. Ele dizia que a cultura portuguesa tem várias componentes e têm de ser todas entendidas nas suas diversas perspetivas, desde a lírica, a épica, até à mais simples do português que gosta de contar anedotas, gosta do lado picaresco da vida.

Neste livro refere vários exemplos, fala de Vasco Graça Moura, de Helena Vaz da Silva, de Eduardo Lourenço e de muitos outros nomes da cultura portuguesa. São pessoas como essas que são importantes para essa sensibilização dos portugueses quanto ao seu legado e herança?

São exemplos. Temos de ter bons exemplos, atrair os melhores à vida social, política e cultural. Essa tem de ser uma preocupação muito grande. Voltamos aos jovens e às crianças, uma das nossas propostas que está em curso, graças à coordenação e iniciativa da doutora Isabel Alçada, que é as escolas poderem adotar um monumento. Não é necessariamente adotar um edifício, é adotar, por exemplo, o património imaterial, uma tradição e também esta coisa muito simples, e evoco aqui o Mário de Carvalho, que é falar bem a língua. É um ato de cidadania. Entendermo-nos bem e melhor, sermos exigentes e, se há erros, retificar esses erros. Falar bem a língua e cuidar das nossas tradições, da culinária ou da gastronomia. Numa iniciativa da conferência episcopal em que fui convidado, eu disse que se há dúvidas quanto à proteção de um bem do património, resguardem-no. Não façam intervenções. Algumas intervenções são muito caras. Então guarde-se, porque às vezes há atos de conservação que destroem aquilo que foi preservado ao longo dos séculos.

Tem havido exemplos disso?

Infelizmente tivemos o caso do Convento de Jesus de Setúbal, que foi, aliás, considerado como um bem ameaçado e que, felizmente, numa convergência da câmara municipal, da administração central e da sociedade civil foi possível tomar medidas nos mesmos termos em que agora estão a ser tomadas medidas relativamente aos carrilhões do Convento de Mafra.

Outro fator de que nos fala neste livro vai para lá da ideia do património edificado, dos monumentos. Fala também da literatura, da pintura e do pensamento. Tudo isso deve ser tomado em conta também neste Ano Europeu do Património?

Certamente. Num momento em que vivemos perplexidades, dúvidas, até o medo do outro na Europa, isso leva à incompreensão daquilo que é a grande riqueza da nossa cultura e da nossa civilização. A grande riqueza da nossa cultura é o que recebemos dos outros e aquilo que demos. A cultura portuguesa é, no melhor de si, isso mesmo, o nunca se fechar sobre si.

A noção da identidade é uma noção perigosa. Vemos isso em alguns pontos da Europa. Há um certo fechamento cultural e social, que é sempre negativo. Diz-se agora que Portugal está na moda. Não sei se está, mas o mais importante é tirarmos as responsabilidades. Se as pessoas gostam de nós, se gostam de vir a Portugal, então sejamos mais exigentes.

Temos um património extremamente rico, é dos mais ricos da Europa, mas esse património tem de ser conhecido. Por isso eu dizia que este projeto das escolas, de ligação, de tomada de consciência é um projeto muito exigente, por ser de conhecimento e não apenas lúdico. É um projeto para estudarmos mais e melhor de onde vimos, aquilo que somos, e para sensibilizar as pessoas para algo que é muito importante que é a qualidade, contrariando assim a mediocridade.

A Europa para se abrir e partir da diversidade precisa de aproveitar este Ano Europeu do Património onde a identidade europeia não pode ser vista como uma identidade que se auto compraz, mas uma identidade que se abre.

É por isso que o património foi o tema escolhido para este Ano Europeu?

Foi escolhido porque precisamos de compreender as raízes europeias, a força dessas raízes e a necessidade de contrariar a tentação populista e xenófoba. Isso faz parte do ADN da Europa.

A Inglaterra, neste processo do Brexit, através da sociedade civil e de associações da sociedade civil, e mesmo não tendo recursos públicos afetos a esta finalidade, está a fazer questão de participar ativamente no Ano Europeu do Património Cultural. É um exemplo de que, apesar da decisão que eu próprio lamento de sair da União Europeia, a verdade é que há cidadãos do Reino Unido que estão profundamente empenhados. Acho que isto é um exemplo fantástico. É um exemplo de quem considera que, apesar de não haver recursos públicos, o mais importante é a tomada de consciência, conhecermos melhor a História, o nosso património material e imaterial e ligar à própria criação contemporânea.

Este livro ajuda-nos a compreender toda essa dimensão, essa diversidade?

Procura fazê-lo. É talvez um pequeno contributo, em que a preocupação fundamental ao invocar personalidades, ao invocar objetivos, é no fundo dizer que é importante esta ideia que está no subtítulo do livro, de “Culto do Património Cultural”. Este culto começa na viagem e na chegada à Índia. É uma viagem um pouco singular, uma vez que poucos conhecem Goa, Damão, Diu, os antigos territórios do Estado da Índia e sobretudo o diálogo e a força do diálogo extraordinário entre a cultura do subcontinente indiano e a cultura portuguesa, esta ideia de viagem. É irmos ao encontro dos outros ao mesmo tempo que nos descobrimos a nós mesmos.

por Maria João Costa, in Rádio Renascença 

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