Reflexões

De 19 a 25 de Julho de 2004

O Chiado de sempre é uma encruzilhada de tempos e de memórias. Subir ou descer o Chiado ao longo das épocas era oportunidade para encontrar Lisboa inteira. A missa do Loreto foi o ponto obrigatório da Lisboa romântica. À porta da Havaneza, onde se liam os telegramas da Havas sobre a sorte do mundo, os janotas discutiam tudo – desde os sucessos da guerra franco-prussiana às festas de sociedade e às beldades do momento…

O Chiado de sempre é uma encruzilhada de tempos e de memórias. Subir ou descer o Chiado ao longo das épocas era oportunidade para encontrar Lisboa inteira. A missa do Loreto foi o ponto obrigatório da Lisboa romântica. À porta da Havaneza, onde se liam os telegramas da Havas sobre a sorte do mundo, os janotas discutiam tudo – desde os sucessos da guerra franco-prussiana às festas de sociedade e às beldades do momento. Do Turf ao Grémio Literário as polémicas estabeleciam-se em relação a tudo. Todos os temas obrigavam a tomar partido. Até o bife à Marrare tinha entusiastas e detractores. Garrett deu o nome à artéria dos dias de hoje – a antiga Rua das Portas de Santa Catarina. Estamos a vê-lo, impecável seguidor dos ditames da moda, irrequieto cidadão, poeta e orador de verve fácil e acutilante. Era o tempo de ir à tarde a S. Bento (ouvir Garrett e José Estêvão) e à noite a S. Carlos ver e ouvir os sucessos do momento. A memória de Alexandre Herculano está bem presente nestas paragens. Parava na Casa Bertrand, para fazer as contas aos livros vendidos. E um dia subscreveu, para surpresa de muitos, o abaixo-assinado contra a proibição das Conferências Democráticas do Casino. Um dia, à porta da Havaneza alguém gritou quando Cesário Verde passava: – Adeus Cesário Azul… A resposta não se fez esperar: – Passe bem seu troca-tintas… Mas é Eça de Queirós o omnipresente. “Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. O Batresqui, o Ferrari, a Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social” – diziam, dogmáticas, “As Farpas”. De tarde, o Teodoro do “Mandarim” ia dar uma volta a pé até ao Pote das Almas. O auge do chique, no dizer de Melchior a Artur em “A Capital”, estava no S. Carlos. Luísa, do “Primo Basílio”, ainda hoje está imortalizada à porta dos Mártires, desesperada, a despedir-se do metediço Conselheiro Acácio. Carlos e Ega interrogam-se sobre o futuro da humanidade e da pátria. Mas o tempo do Chiado não pára. No Verão de 1910, Lisboa já era republicana – disseram-no, de modo insofismável, as urnas. Lembre-se Raul Brandão, os grupos da Biblioteca Nacional, Cortesão, Sérgio e Proença, os saudosistas de “A Águia”, admiradores de Teixeira de Pascoaes, os iconoclastas de “Orpheu”, revista de Luís Montalvor, de Pessoa, de Mário de Sá-Carneiro, de Ronald de Carvalho, de Almada e de José Pacheco… A Brasileira torna-se o ponto de encontro da nova inteligência e dos novos manifestos. Almada Negreiros, sempre excessivo, rompe com todos os conformismos. Fernando Pessoa faz da aldeia onde nasceu o alfobre dos seus heterónimos e o seu espírito passeia-se, ainda hoje, por aqui, de braço dado com Alberto Caeiro, recitando o “Guardador de Rebanhos” (“Eu nunca guardei rebanhos…”), com os discípulos, Dr. Ricardo Reis e Engº Álvaro de Campos. No Chiado entende-se bem o “sê plural como o universo!”.

Guilherme d`Oliveira Martins

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