A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Manoel de Oliveira realizou «Palavra e Utopia» (2000), obra fundamental sobre o Padre António Vieira, a sua vida e obra, que nos permite tomar contacto com alguns dos textos fundamentais da oratória e da epistolografia do grande prosador da língua portuguesa.

A VIDA DOS LIVROS
de 30 de dezembro a 5 de janeiro de 2014

Manoel de Oliveira realizou «Palavra e Utopia» (2000), obra fundamental sobre o Padre António Vieira, a sua vida e obra, que nos permite tomar contacto com alguns dos textos fundamentais da oratória e da epistolografia do grande prosador da língua portuguesa.

 

A INVOCAÇÃO DO PADRE VIEIRA
Lima Duarte, o versátil ator brasileiro, personificou a figura do Padre António Vieira, numa homenagem muito especial que a Universidade de Coimbra prestou ao orador sagrado no final de novembro. Passavam 350 anos, dia por dia, sobre o momento em que, em 1663, foi proferido o Sermão de Santa Catarina, Virgem e Mártir. Tendo a cidade do Mondego sido palco do estranho julgamento e da condenação de Vieira pela Inquisição («seja privado para sempre de voz ativa e passiva, e do poder de pregar, e recluso no colégio, ou casa de sua Religião, que o Santo Ofício lhe assinar, donde, sem ordem sua não sairá»), é significativo que a memória tenha sido recordada, em reconhecimento do muito devido ao mestre maior da língua portuguesa. E foi com emoção que nessa noite, no emblemático Teatro Gil Vicente, com a presença de Manoel de Oliveira, tivemos a apresentação do filme «Palavra e Utopia», uma das suas obras mais marcantes, que aproveita, de modo magistral, a vida e obra do Padre Vieira, partindo de Coimbra e dando-nos a panorâmica singularíssima da sua vida, através da sua oratória e epistolografia. E o certo é que deparamos com a procura pelo jesuíta da razão de ser de um povo paradoxal, que combate e defende, a um tempo, o mito e a racionalidade. Em 1663, foi chamado a Coimbra para responder perante o Santo Ofício sobre as suas considerações a propósito das «Trovas» de um sapateiro ignoto, que tinha por nome Bandarra. E, depois de ter sido um dos conselheiros favoritos de D. João IV, Vieira vê-se na necessidade de demonstrar a sua inocência, a propósito de uma suposta heresia. Era o tempo de D. Afonso VI, cujo séquito não escondia animosidade contra o jesuíta. Perante os juízes, revê a sua vida: desde a juventude brasileira, passando pelo noviciado baiano, pela sua defesa da causa dos índios e pelos primeiros sucessos do púlpito. O filme conta com três atores que representam o mestre dos «Sermões», Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra e Lima Duarte, em três momentos de sua vida. E foi este último que ali esteve connosco, para nos lembrar a efígie do homenageado, mesmo recordando-me que se sentia, modestamente, talvez mais uma reencarnação de Zeca Diabo, do que a do grande Vieira.

«PALAVRA E UTOPIA»
No filme, a Bahia e Roma são polos que evidenciam os desgostos de Vieira, obrigado a partir para a cidade papal para se proteger da decisão inquisitorial, que entretanto fora atenuada, em 1668, pelo perdão de todas as penas a que fora condenado, mantendo-se apenas a «proibição de tratar as proposições heterodoxas contidas na sentença». No entanto, antes de partir, dirá em Lisboa: «Quem fez o que devia, devia o que fez: e ninguém espere paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se venci, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à Pátria, fiz o que devia a mim mesmo». Em Roma, conta com o apoio do Superior Geral da Ordem, Padre João Paulo Oliva, e ganhará fama, que chega à corte da Rainha Cristina da Suécia, que abdicara e se convertera ao catolicismo. Os objetivos formais da sua ida são: reativar o processo de canonização do Beato Inácio de Azevedo e dos trinta e nove companheiros martirizados pelos huguenotes franceses, tratar do melindroso tema dos cristãos-novos e obter um breve pontifício que o isente da jurisdição da Inquisição portuguesa. Os cinco anos de Roma são de intensa atividade, designadamente epistolar, com o Duque de Cadaval, o Padre Manuel Fernandes, D. Rodrigo de Menezes, os Marqueses de Gouveia e de Minas e, sobretudo, Duarte Ribeiro de Macedo – mantendo-se o clérigo ao corrente de todas as vicissitudes políticas nacionais. Em 1670, profere na igreja de Santo António dos Portugueses, o sermão de 13 de junho, na ocasião em que o Marquês de Minas, embaixador extraordinário de Portugal, fez a embaixada de obediência ao Papa. Então dirá sobre a fama de António de Lisboa: «Sem sair ninguém pode ser grande»; e «por isso nos deu Deus pouca terra para o nascimento e tantas para a sepultura; para nascer pouca terra, para morrer toda a terra; para nascer Portugal, para morrer o mundo». Em dezembro de 1673, a rainha Cristina designa-o pregador oficial da sua Casa, mas o Padre recusa tão aliciante proposta, para não perder a confiança do regente português, o futuro D. Pedro II, e para não ficar definitivamente afastado da pátria. O principal resultado da estada tem a ver com este último aspeto: Clemente X (representado por Duarte de Almeida, ou seja, por João Bénard da Costa) assinará a 17 de abril de 1675 a libertação definitiva do Padre Vieira, sujeitando-o à Congregação romana do Santo Ofício e absolvendo-o de todas as penas, censuras e restrições eclesiásticas, até então proferidas contra ele. Conseguira-se o essencial e, assim, já podia regressar a Portugal, julgando contar com o acolhimento favorável de D. Pedro. No entanto, uma vez regressado e apresentando-se-lhe, conta com uma reação fria e pouco disponível. Estava chegado o fim da sua influência, apesar de sinais muito ténues de apreço formal. Conselhos menores são ainda solicitados, mas há desconfiança relativamente ao seu pensamento sobre os cristãos-novos. A ironia e a distância de Vieira relativamente a D. Pedro são, aliás, evidentes num breve remoque presente no filme…

UM VARIADO TEATRO DO MUNDO
Aníbal Pinto de Castro, analista rigoroso do Padre Vieira, diz-nos que «a sua visão do mundo e da vida transforma-se (…) num grande e variado teatro do mundo, dinamizado, qual “perpetuum mobile”, pela força caleidoscópica da mudança». E é esse teatro do mundo que Manoel de Oliveira bem entende em «Palavra e Utopia». Do mesmo modo que ilustra na prática o que Margarida Vieira Mendes afirmou, melhor que ninguém: Vieira fez da «própria palavra uma força, uma espécie de energia, capaz de influenciar e motivar a ação». A oratória barroca, apresentando a coincidência dos opostos («coincidentia oppositorum», na expressão de Dâmaso Alonso) procurava, afinal, pela contradição e pelo paradoxo, suscitar a transformação e a mudança. «Quando vejo que Deus me compra com todo o seu sangue, não posso deixar de cuidar que sou muito (disse Vieira no Sermão da Quarta Dominga do Advento, de 1650); mas quando vejo que eu me vendo pelos nadas do mundo, não posso deixar de crer que sou nada»… Como considerou António José Saraiva, ao falar do «discurso engenhoso»: «a orgânica do discurso consiste em tirar de determinada palavra (…) um número indefinido de outras palavras, que se organizam segundo as leis de uma composição, decorrente mais de uma estética geométrica do que de uma geometria dedutiva». Em «Palavra e Utopia» há a compreensão dessa ligação entre a palavra e o sonho, entre o verbo e a ação. Enigmaticamente, porém, as últimas palavras de Vieira no filme são: «tudo é vento, tudo é fumo»… Mas António Vieira nunca desistiu da articulação entre dizer e agir. Por isso, definiu regras para que a multiplicação de temas e a prolixidade na sua apresentação não prejudicassem a eficácia do discurso…

Guilherme d’Oliveira Martins 

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