A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Se estivesse entre nós, António Quadros (1923-1993) faria noventa anos no próximo dia 14 de Julho. Em boa hora, a Fundação que tem o seu nome, organizou na Universidade Católica um importante seminário dedicado à sua obra e ao legado que nos deixou. E se desejamos manter presente a sua memória, devemos regressar à sua escrita e à sua reflexão – lembrando-nos, por todos, de «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas. Velho amigo do Centro Nacional de Cultura, não o esquecemos.

A VIDA DOS LIVROS
de 27 de Maio a 2 de Junho de 2013


Se estivesse entre nós, António Quadros (1923-1993) faria noventa anos no próximo dia 14 de Julho. Em boa hora, a Fundação que tem o seu nome, organizou na Universidade Católica um importante seminário dedicado à sua obra e ao legado que nos deixou. E se desejamos manter presente a sua memória, devemos regressar à sua escrita e à sua reflexão – lembrando-nos, por todos, de «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas. Velho amigo do Centro Nacional de Cultura, não o esquecemos.



ESPÍRITO ABERTO E LIVRE
António Quadros era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das relações desta com a tradição. Para ele, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, fiel ao gesto inconformista de seu pai, António Ferro, no «Orpheu», mas também capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude de Fernando Pessoa, inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra. Antes de tudo, era uma pessoa atenta à realidade que o cercava, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, e o modo de ser «homo viator», como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965). Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram características que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma posição transpersonalista, para assumir a força da eminente dignidade da pessoa. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como império da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.


E PORTUGAL? COMO O TRATAMOS?
«Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido». Fora de uma mitificação da identidade (no sentido da mumificação), o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». E aqui sentimos o criacionismo de Leonardo Coimbra. Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou a ir além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia – ontem como hoje. Portugal precisaria, isso sim, de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim (costumava dizer), nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E aqui seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe.


O PROBLEMA MODERNO
«O grande problema moderno não é, quanto a mim (alertava António Quadros), um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». Os acontecimentos recentes demonstram-no à evidência. E a verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído, o império do futuro, não seria uma pura quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Trata-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos (na linha do que sempre defendeu) um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».     


Guilherme d’Oliveira Martins

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