A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

O início da edição da “Obra Completa” do Padre António Vieira (1608-1697), sob a direção de José Eduardo Franco e de Pedro Calafate (Círculo de Leitores), é um acontecimento da maior importância e ficará como um dos marcos fundamentais na vida da cultura de língua portuguesa. “Cartas Diplomáticas” e “A Chave dos Profetas” (I e II) iniciam a chegada junto do público desta obra magna, apoiado pelo Centro Nacional de Cultura, entre muitas instituições de Portugal e do Brasil.

A VIDA DOS LIVROS
de 22 a 28 de abril 2013



O início da edição da “Obra Completa” do Padre António Vieira (1608-1697), sob a direção de José Eduardo Franco e de Pedro Calafate (Círculo de Leitores), é um acontecimento da maior importância e ficará como um dos marcos fundamentais na vida da cultura de língua portuguesa. “Cartas Diplomáticas” e “A Chave dos Profetas” (I e II) iniciam a chegada junto do público desta obra magna, apoiado pelo Centro Nacional de Cultura, entre muitas instituições de Portugal e do Brasil.


 
Desenho de Baptistão, Estado de S. Paulo.


VIEIRA EM TEMPO DE CRISE
A obra de Vieira é rica de temas e de propostas. Como conselheiro de D. João IV, encontramos alvitres audaciosos e oportunos, que surpreendem pela inteligência e pela agudeza da argumentação. O tema dos cristãos-novos singulariza-se pela centralidade e pela coragem. Oiçamos o pregador, falando a D. João: «O reino de Portugal, senhor, não melhorando do estado em que de presente o vemos, tem muito duvidosa a sua conservação, porque, ou a consideremos fundada no poder próprio, ou no alheio, um e outro estão prometendo pouca firmeza». A proposta é de julho de 1643, dando conta das fragilidades de Portugal, saído da restauração da independência. O «miserável estado» do reino exigia medidas urgentes, designadamente receber mercadores (grande parte dos quais de origem judaica) que andavam por diversas partes da Europa. Decorria a guerra dos trinta anos (1618-1648), fundando-se a «conservação de Portugal» num poder próprio, as conquistas, e num poder alheio, «a diversão que fazem a Castela as armas de França», contudo se imediatamente essa situação permitia alguma segurança, a verdade é que «por muitas e mui eficazes razões se deve considerar pouco durável». Se era verdade que as «armas francesas» estavam vitoriosas, poderiam vir a dar lugar às castelhanas. Importaria, assim, prevenir uma eventual alteração no sentido dos ventos dominantes. Sendo certo que a história confirmaria essa tendência, a verdade é que, como inteligente estratega, o Padre António Vieira alertava o rei para a necessidade de se preparar e prevenir. «A nação francesa, naturalmente, é inconstante, inquieta, amiga de novidades, e fácil de corromper-se por dinheiro». Além de que a guerra não poderia durar muito, pelos custos que envolvia, pelos tributos a que obrigava aos povos e pelo cansaço que suscitava. A paz estaria perto, mas Castela, mesmo que perdesse, ficaria com as mãos livres para limitar as pretensões portuguesas. Demais a mais uma França vitoriosa poderia sempre, também ela, forçar o seu domínio.


AS CONDICIONANTES ECONÓMICAS
Deveria perguntar-se: «se o dinheiro de três anos não foi bastante para fazer as prevenções necessárias para a guerra; que tesouros tem Portugal para se socorrer e armar de repente quando seja acometido, se todas as rendas e tributos, sendo os maiores que pode lucrar o reino apenas bastam para sustentar as guarnições das nossas fronteiras com meia paga aos soldados?». Vieira oferece-nos uma premonitória análise económica: «porque as confiscações e cunho da moeda foram acidentes, que se não podem repetir; as rendas e as comendas estão empenhadas para muitos dias e anos; os juros, as tenças e os salários não se pagam com um levantamento da moeda, que desce o preço às mercadorias, e faz que os estrangeiros tragam prata em vez de drogas, com que quebram muito os direitos das alfândegas; as terras das fronteiras, infestadas do inimigo deixam de se cultivar por muitas léguas; as lavouras e as artes, levando-lhes os oficiais e lavradores para a guerra, se diminuem; o que tudo se vai consumindo e atenuando as forças do reino com passos tão largos, que em poucos anos não poderão os homens manter as vidas, quanto mais pagar os tributos, e sustentar as despesas da guerra». E as conquistas? «De três anos a esta parte tem vossa majestade (lembra Vieira) mandado à Índia uma nau de guerra, e nove galeões, e em retorno de todo este cabedal, temos visto três caravelas, servindo-nos aquela conquista, pela gente, navios e dinheiro, que nos leva, de muito estorvo, e maior gasto que proveito». A posição da Índia claudicava e havia ameaças como em Pernambuco, Angola, Maranhão e S. Tomé. Só o Brasil sustentava o comércio e as alfândegas. Tudo somado, a posição portuguesa resultava incerta e frágil. A conservação do reino era, assim, «muito duvidosa e arriscada». E a importância que nos era atribuída pela Europa vinha sendo reduzida. Não se via em Lisboa algum embaixador de um príncipe da Europa, o que demonstrava o menosprezo a que o nosso poder era votado. Importaria, pois, recorrer aos mercadores portugueses, «homens de grandíssimos cabedais», espalhados pela Europa. Haveria que atraí-los, com que «o reino se fará poderosíssimo, e crescerão os direitos das alfândegas de maneira que eles bastem a sustentar os gastos da guerra, sem tributos nem opressão dos povos, com que cessarão clamores e descontentamentos».


MOBILIZAR OS CRISTÃOS NOVOS
Haveria, pois, que mobilizar os cristãos-novos e os seus recursos, até para que os cristãos-velhos se não deixassem iludir pelo poder de Castela. E importaria levantar companhias como as dos holandeses para explorar o comércio, porque por falta deste «se reduziu a grandeza e opulência de Portugal ao miserável estado em que vossa majestade o achou, e a restauração do comércio é o caminho mais pronto de a restituir ao antigo». E seria necessário ir ao encontro de onde estavam os recursos indispensáveis à recuperação do reino. Por outro lado, «é também conforme à sentença comum de todos os teólogos, os quais assentam que para defesa e conservação dos reinos podem os príncipes confederar-se, e chamar e unir a si qualquer género de infiéis». E, invocando diversos exemplos dos reinos cristãos, lembra Vieira que o próprio Papa consente nos seus domínios sinagogas públicas de judeus, que professam a lei de Moisés, não havendo razões para não admitir entre nós «homens cristãos batizados, de que só pode haver suspeita que o não serão verdadeiros». Com argumentos do seu tempo, lembra ainda que a Europa está cheia de heresias e que tal não impede a criação de riqueza por esses súbditos. «…E o judaísmo não passa de homens da mesma nação: pois se a necessidade da guerra nos obriga a admitir entre nós heresias mais contagiosas, porque não admitiremos os que são menos arriscados?». Afinal, se temos connosco os que não têm os recurso indispensáveis, não podemos dificultar os que «hão de ser de tão grande proveito e conveniência». Os danos do seu afastamento são evidentes e definitivamente Vieira deixa-nos o juízo lógico inabalável: «se o dinheiro dos homens da nação está sustentando as armas dos hereges, para que semeiem e estendam as seitas de Lutero e Calvino pelo mundo não é maior serviço de Deus e da Igreja que sirva este mesmo dinheiro às armas de rei mais católico, para propagar e dilatar pelo mundo a lei e a fé de Cristo?». E eis a invocação profética: «porque dizem que ao rei encoberto virão ajudar os filhos de Jacob, e que por meio deste socorro tornarão ao conhecimento da verdade de Cristo, a quem reconhecerão e adorarão por Deus». Se D. Manuel e de algum modo D. João III favoreceram os «homens de nação», e D. Sebastião revogou esse entendimento, o certo é que «nem o favor com que os trataram os dois primeiros lhes retardou o curso das suas felicidades, nem o rigor com que procedeu contra eles o terceiro bastou a melhorar os sucessos da sua e nossa fortuna»… Afinal o que a crise exigia era uma resposta justa.


Guilherme d’Oliveira Martins

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