A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Brèsil Baroque – Entre Ciel et Terre» é o catálogo da exposição promovida pela União Latina no Petit Palais de Paris, em 1999-2000, quando o Secretário-Geral da União Latina era o Embaixador Geraldo Cavalcanti, que encontrámos na visita que fizemos à Academia Brasileira de Letras. É uma peça fundamental para o conhecimento do Barroco de Minas Gerais, a que regressamos, na sequência da nossa viagem de Setembro passado.

A VIDA DOS LIVROS
de 26 de Novembro a 2 de Dezembro de 2012



«Brèsil Baroque – Entre Ciel et Terre» é o catálogo da exposição promovida pela União Latina no Petit Palais de Paris, em 1999-2000, quando o Secretário-Geral da União Latina era o Embaixador Geraldo Cavalcanti, que encontrámos na visita que fizemos à Academia Brasileira de Letras. É uma peça fundamental para o conhecimento do Barroco de Minas Gerais, a que regressamos, na sequência da nossa viagem de Setembro passado.



CONTINUANDO A DEAMBULAÇÃO
Voltamos a Vitorino Nemésio na sua deambulação de há sessenta anos no Brasil. E relemo-lo, sentindo a força das suas palavras: «Viajar pelo Brasil não é só conhecer a maior fundação de Portugal a distância e um país novo e imenso que originalmente se afirma sem renegar tais raízes: é criar uma nova perspetiva da pátria no regresso. A afinidade e o paralelo orientam-nos a visão transatlântica de uma realidade histórica solidária» («O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos», IV). De um lado e de outro do Atlântico, há um diálogo complexo que se estabelece, de encontro e desencontro – sim, porque é natural que haja igualmente desencontro quando falamos de realidades irmãs. Senti-o intensamente quando falei com António Cândido (com o meu querido amigo Celso Lafer) – nesta relação há sempre a afinidade e a distância de quem se emancipa. É isso que encontramos em Sérgio Buarque de Holanda («Raízes do Brasil»), em Caio Prado (na «Formação do Brasil Contemporâneo»), ou, antes, em Gilberto Freyre (de «Casa Grande e Senzala»). Aliás, Fernando Henrique Cardoso, analista fino da modernidade brasileira, faz a síntese dessa encruzilhada riquíssima, considerando o que nos une e nos distingue, que Nemésio bem antevê na sua impressão final, após a viagem iniciática de 1952. Notei isso mesmo há dias, num encontro fraterno na Cidade da Praia com Corsino Fortes, Fátima Bettencourt, Vera Duarte, Filinto Elísio e Eileen Barbosa – num ágape frugal em que falámos da cultura como um domínio onde as diferenças se reforçam mutuamente, na procura do que é comum. E se referimos uma língua de várias culturas, também lembrámos (e sem contradição) uma cultura de várias línguas. Assim ocorre na complexa relação luso-brasileira, e Cabo Verde é um caso bem interessante, a meio da ponte, como placa giratória no Atlântico Sul e no sul da Macaronésia…


ENCONTRO DO BRASIL E PORTUGAL
Mas regressemos ao escritor do «Paço do Milhafre»: «Onde a terra e o clima resistiram à vontade uniformizadora do colono, onde o aborígene e o brasileiro histórico chegaram a formas de uma civilização espontânea e própria, as diferenças robusteceram a consciência do idêntico, e Brasil e Portugal gravitam na imaginação do reinol num milagroso equilíbrio de ajustes e contrastes». Aqui estará, de modo evidente, a chave desta relação manifestada no que dizíamos nesse grupo de amigos em Cabo Verde (onde, além dos crioulos e da morna, não poderia ter faltado a reflexão sobre as crises que nos assolam). De facto, «uma língua de várias culturas» realiza-se através de ajustes e contrastes, e nunca de quaisquer tentações uniformizadoras ou paternalistas. É uma história «antológica e ontologicamente» cruzada entre a Europa e o Brasil, como nos diz Filinto Elísio. E foi isso mesmo que também se debateu, ao fim de uma amena tarde de Setembro, em Ouro Preto, na mágica Vila Rica, com Ângelo Oswaldo, prefeito da cidade, e Leonor Xavier, no velho Bar Toffolo, sobre a relação luso-brasileira – «um rio que corre sem parar». Falamos de Nemésio (naturalmente), mas também de José Aparecido de Oliveira e da sua paixão lusófila, de Agostinho da Silva, de Saudade e de seu pai Jaime Cortesão, de Murilo Mendes, de Carlos Drummond, de Manuel Bandeira, de Cecília Meireles, de Vinicius de Moraes, e igualmente do nosso querido António Alçada Baptista, de Jorge de Sena e de Odylo Costa Filho. Discretear sobre uma amizade em dois sentidos é sempre apaixonante. E tudo isso depois de lembrarmos o ouvidor Tomás António Gonzaga, o inconfidente Dirceu de Marília, de irmos ao Museu da Inconfidência (relendo de memória Cecília Meireles) e de invocarmos o barroco em todo seu esplendor – o primado do movimento e da curva, que os modernos seguiram com paixão – na Igreja de S. Francisco de Assis da Penitência (uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo), onde começamos a sentir a força do genial António Francisco Lisboa e de seu pai, Manuel, mas também na Ordem Terceira do Carmo (com risco inconfundível do Aleijadinho e pinturas de Athayde).


NO TOFFOLO, ENTRE MEMÓRIAS
Na manhã seguinte, a névoa rodeava o Itacalomi (ou Itakurumi), lá no alto da montanha, a rocha que permitiu aos bandeirantes encontrar o lugar onde tinha sido descoberto o ouro paladiado, enegrecido pelo óxido de ferro. Mas essa neblina dissipou-se por completo até ao momento em que deixámos Ouro Preto, lembrando-nos Carlos Drummond de Andrade a parodiar o dia em que se esqueceu de marcar a refeição no Hotel Toffolo: «tudo se come, tudo se comunica, tudo no coração é ceia». Vila Rica fica-nos no coração. Lembramo-nos da tarde memorável: o estilo joanino de Nossa Senhora do Pilar, a segunda igreja mais rica em talha dourada do Brasil, depois do Convento S. Francisco e Ordem Terceira em Salvador da Bahia (outra das sete maravilhas), a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, outro projeto de Manuel Francisco Lisboa, com o Museu do Aleijadinho (apoiado por técnicos portugueses, com o empenhamento de Maria João Bustorff), além da Fonte de Marília, a jovem Maria Doroteia Joaquina Seixas, e do Museu das Minas. E como esquecer o Museu do Oratório, com os diversos e preciosos oratórios de alcova, de algibeira, de viagem, de bala, de conchas, as lapinhas, além da imponência dos conventuais?

A CIDADE DE MARIANA…
A viagem, contudo, tem de prosseguir e dirigimo-nos, nessa manhã do dia da Independência para cidade de Mariana, não sem que nos detivéssemos na Mina de Passagem, que esteve em atividade de 1819 a 1985. Descemos no pequeno trem até às galerias, que ainda se podem visitar. Ficámos a 150 metros de profundidade, com uma leve sensação de claustrofobia, recordando a vida curta dos mineiros, sujeitos a graves doenças profissionais pelo efeito tremendo do pó de quartzo. Já chegados à primeira cidade de Minas Gerais, dirigimo-nos à Sé, onde ouvimos um divinal concerto de órgão de Josinéia Godinho, a tocar Cabanillas, Pablo Bruna, Dietricht Buxtehude, George Böhm e Albinoni no órgão único de Arp Schnitger, instalado em 1753 na catedral. Tudo leva a crer que este teria sido destinado a Mafra, mas o som foi considerado menos adequado para um convento franciscano. A origem da cidade remonta aos primórdios, à época em que os bandeirantes chegaram em busca de ouro no fim do século XVII. Inicialmente o governador António Albuquerque criou o arraial de Ribeirão do Carmo, que se tornou Vila Real de Nossa Senhora do Carmo, tendo a designação de Mariana sido adotada só em 1745, em homenagem à Rainha D. Maria Ana de Áustria, casada com D. João V. Na Praça principal, deparamo-nos com as imponentes Igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de S. Francisco de Assis, em frente aos Paços do Concelho e à cadeia, tendo no centro o Pelourinho identificado com as armas do Império – a esfera armilar, as estrelas e a cruz de Cristo. Mas, dileto, o tempo urge e ainda temos de chegar a Congonhas com a luz do dia, para a justíssima homenagem a António Francisco Lisboa…


Guilherme d’Oliveira Martins

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