A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos» (Bertrand, 1954) de Vitorino Nemésio é uma obra apaixonante. Aí se encontra a verdadeira descoberta por Nemésio da força e da importância da cultura brasileira no mundo da língua portuguesa. É um livro indispensável para compreendermos não só o autor, mas também a importância de um diálogo necessário entre os dois lados do Atlântico. Minas Gerais são muito mais do que o coração brasileiro, são a chave para a compreensão da unidade brasileira e das potencialidades presentes e futuras do diálogo luso-brasileiro.

A VIDA DOS LIVROS
de 8 a 14 de Outubro de 2012



«O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos» (Bertrand, 1954) de Vitorino Nemésio é uma obra apaixonante. Aí se encontra a verdadeira descoberta por Nemésio da força e da importância da cultura brasileira no mundo da língua portuguesa. É um livro indispensável para compreendermos não só o autor, mas também a importância de um diálogo necessário entre os dois lados do Atlântico. Minas Gerais são muito mais do que o coração brasileiro, são a chave para a compreensão da unidade brasileira e das potencialidades presentes e futuras do diálogo luso-brasileiro.



UMA VIAGEM HISTÓRICA
Vitorino Nemésio aqui veio há exatamente sessenta anos (escrevo na antiga Vila Rica, quando a névoa já se desvaneceu) e deixou-nos «O Segredo de Ouro Preto», que trazemos como breviário para esta peregrinação ao Sertão de Minas. É impressionante como sentimos os seus passos em cada página que lemos e em cada viela, beco ou travessa que calcorreamos. O certo é que o professor e o poeta olharam com sentido crítico esse momento de encontro, cientes das resistências e das distâncias naturais que iam sentindo. Ao seu amigo Celso Cunha chama-lhe Nemésio novo «inconfidente», como se o ADN de Tiradentes nele revivesse de modo renovado. E diz, atento aos diálogos que foi entabulando com os estudiosos brasileiros da nova geração: «Graças a uma historiografia brasileira de métodos sociológicos pôde restituir-se à era colonial o estilo civilizador que já implicava a comparticipação do génio brasileiro autóctone no delinear dos caminhos que o Brasil percorreu no sentido de uma consciência diferenciada e peculiar em relação à comunidade histórica connosco». O Brasil de hoje é, de facto, uma síntese complexa (muito mais rica do que possa parecer à primeira vista), mas a personalidade própria do brasileiro envolve aproximações e distâncias e «sempre resíduos de desconfiança, até de ressentimento». E, se Vitorino Nemésio falava de resistências, também dizia que era muito precário o nosso conhecimento da historiografia brasileira – «nunca chegando a focar o processo posterior que, em terra sul-americana, partia de raízes nossas». Já então afirmava por isso que no ensino da nossa língua e literatura «não anda Gregório de Matos; sobre Gonzaga hesita-se; Gonçalves Dias e Castro Alves não contam; Machado de Assis, dos maiores prosadores que ela teve, é um romancista estrangeiro»… O tempo passou, e Nemésio foi, sem dúvida, dos que mais trabalhou para superar o divórcio feito de sentidos contraditórios – ora a saudade, ora a suspeita. Mas fica ainda muito trabalho para fazer – não basta dizer que temos de nos conhecer, urge fazer fluir os diálogos de duplo sentido.


A PRESENÇA DE TOMAZ ANTÓNIO DE GONZAGA
Em Maio de 1952 teve lugar a viagem matricial que agora refizemos com outros caminhos. Sentimos, na Pousada Mondego (depois de uma entrada histórica numa jardineira Mercedes de 1930), com ecos especiais de Coimbra, em cima da casa de Dirceu, a dois paços da Praça Tiradentes e do Museu da Inconfidência, o que o nosso dileto precursor sentiu junto da Casa dos Contos, lá mais abaixo: «Levanto-me às seis, com os galos. Oiço os sinais da terra, que afugentam talvez os urubus. O casario coroado de pombas minuciosas, tem todos os tons da paleta. Uma nuvem de seda coroa o Itacolomi rosado e cínzeo entre lombas. Distingo a Igreja do Carmo no seu maciço de árvores; as janelas respiram em largos panos de muros; há beirais e mansardas toucando os quarteirões, enquanto na manhã de turmalina os fuminhos do café do mata-bicho se vão lentamente desprendendo». E o certo é que o Itacolomi (pedra da criança) está lá no alto mesmo em frente da janela do meu quarto. Não preciso idealiza-la. E a neblina que Carlos Drummond de Andrade um dia disse que o poderia satisfazer à falta de refeição consistente também está diante de mim. É curioso (ou talvez não) que mesmo os nossos companheiros que deixaram Nemésio para ler mais tarde, façam comparações que ele também realiza: «Estou em Minas Gerais e é como se estivesse num Portugal caldeado de vilas do Norte e do Sul. A ponte, à Casa dos Contos, parece estender-se sobre o Tâmega e colocar-nos na vila de Amarante»… Há a «ilusão de um Portugal transplantado» – mas Nemésio procura um segredo em Ouro Preto, porque sente que se trata de uma «cidade íntegra morta», talvez sem os tesouros de arte da antiga Toledo, mas com as características de um «mundo abreviado do barroquismo religioso e minerador luso-brasileiro». Apesar desta dúvida, o certo é que percebemos que o poeta tem a intuição plena que os estudiosos do barroco mineiro irão desenvolver sobre o carater único deste labirinto de tesouros.


O REINO DO BARROCO
Aquela «civilização dividida entre a salvação e a cupidez» que cristalizou no «lapso de pouco mais de um século» é muito mais do que um ápice passageiro. E hoje, conhecida a obra de Germain Bazin e dos seus discípulos, percebemos muito bem que esse «segredo» nada tem a ver com algo de parecido com a tragédia do ouro da colonização espanhola e com o tremendo choque de civilizações da América do oeste. Aqui não há uma «civilização magnificente e vencida», mas sim um território imenso que começa a construir uma civilização nova, que chega aos nossos dias. E é curioso que o Governador de Minas Gerais de há sessenta anos, Juscelino Kubitschek, criador do que viria a ser a cidade do novo tempo – Brasília – e homem de sonhos rasgados, tenha apoiado esta peregrinação de Vitorino Nemésio por terras mineiras, interrogando-se este sobre um lugar onde há a conquista de um sertão inóspito, em diálogo intenso (inexcedivelmente descrito por João Guimarães Rosa) entre a surpresa e o sonho, a criação e o mito. «O gentil e dinâmico Governador de Minas, generosamente pôs à nossa disposição… um carro» – diz Nemésio. E o chofer avisa o escritor, à saída de Belo Horizonte: – «A estradinha lá é muito vagabunda». E, falando das audácias de J.K., na Pampulha, o escritor hesita na apreciação da nova igreja, perante o modernismo de Óscar Niemeyer: procurando compreender o «franciscanismo violento, um pouco precoce, ou então serôdio de mais. Cristianismo de amanhã se tornar a haver catacumbas».


A MAGIA DE MINAS GERAIS
Voltando ao segredo de Minas, a síntese está bem delineada, a propósito do controverso Manuel Borba Gato, bandeirante de vida acidentada e temerária: «A verdade é que os bandeirantes de Piratininga, embora brasileiros extremes, já tinham o seu casticismo entrosado de fontes lusas. Dia virá em que o historiador de cá e de lá não tenha de fazer intervir nos seus critérios a brasa puxada à sardinha… O Brasil é obra indistinta de Portugal e dele mesmo. O português cá chegado é logo brasileiro: o mineiro mais nativo é um português do poente americano». O caderno de Vitorino reunia garatujas que seguem escrupulosamente no seu texto memorável. No nosso caso, trouxemos o Nuno Saraiva, cartunista bem conhecido, que encheu cadernos de mil apontamentos, para além das muitas fotografias.    Ao termos as palavras de Nemésio, no sobe e desce das vielas, no olhar surpreendido do lajedo e das varandas, das janelas de guilhotina e das treliças, no bisbilhotar das quitandas, dos botecos e dos muxarabiés, entendemos que, sessenta anos depois de o poeta aqui ter estado, Belo Horizonte, Sabará, Itabira, Diamantina, Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Tiradentes ou S. João del-Rei retiveram o caráter antigo, a personalidade persistente, mas ganharam um sentido novo de lembrança histórica, que deixou de ser mera recordação de ontem, para passar a ser a base de um futuro que liga as raízes e as asas do sonho.


Guilherme d’Oliveira Martins

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