A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«A Sibila» de Agustina Bessa-Luís (Guimarães Editores, 1954) constituiu no momento em que foi dado à estampa um caso singular na literatura portuguesa. Eduardo Lourenço disse que, no mundo romanesco, o seu simples aparecimento deslocou o centro de atenção literária. Hoje, relendo-o, percebemos bem esse deslumbramento. «Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram vida». «Eis Germa, que embalando-se na velha rocking-chair, pensa e pressente, sabendo-se atual relicário desse terrível, extenuante legado de aspiração humana»…

A VIDA DOS LIVROS
de 3 a 9 de Setembro de 2012



«A Sibila» de Agustina Bessa-Luís (Guimarães Editores, 1954) constituiu no momento em que foi dado à estampa um caso singular na literatura portuguesa. Eduardo Lourenço disse que, no mundo romanesco, o seu simples aparecimento deslocou o centro de atenção literária. Hoje, relendo-o, percebemos bem esse deslumbramento. «Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram vida». «Eis Germa, que embalando-se na velha rocking-chair, pensa e pressente, sabendo-se atual relicário desse terrível, extenuante legado de aspiração humana»…




URBE DE CARÁTER E DE MÍSTICA
Já o disse em várias circunstâncias que a minha cidade de eleição histórica e ancestral é o Porto, urbe de caráter e de mística. Daqui fui deputado uma década e meia, e quando regresso, sinto sempre a força dos amigos (em memória e em vida) e da literatura. E o certo é que para Agustina Bessa-Luís, um dos melhores símbolos da cidade, a literatura tem sempre um lado de diversão e de mistificação. Quando lemos a sua escrita, os seus livros, quando nos deixamos atrair pelos seus enredos, percebemos que Agustina está constantemente a provocar-nos, seus leitores, e a suscitar a perplexidade. A artista seduz através do inesperado e também do impensável. Estamos diante do culto do encantamento pela escrita. «Eu acho que não há inteligência sem coração. A inteligência é um dom, é-nos concedida, mas o coração tem que a suportar humildemente, senão é perfeitamente votado às trevas». Veja-se a sua escrita serrada e intensa, sem espaços por cobrir, em que o encadeamento é a reprodução da vida tal como acontece, imperfeita, incoerente, mas também naturalmente dominada pelas rotinas, que são sempre aparentes. E que são as rotinas senão uma sucessão de momentos improváveis? Quando, nos anos sessenta, Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa chamaram a atenção para a importância literária de Maria Agustina causaram enorme perturbação. É que a escritora parecia estar fora dos cânones comummente aceites. Contudo, com a evolução dos acontecimentos, essa polémica acesa, lançada no seio de «O Tempo e o Modo» deu lugar a um progressivo reconhecimento do grande valor da romancista que, em simultâneo, parecia seguir os passos de Camilo (apesar de dizer que o autor do «Amor de Perdição» era contido por escrever sobretudo para as mulheres), não escondendo o seu íntimo fascínio por Dostoievski – de quem estivera também próximo um grande e injustamente esquecido dos melhores escritores da nossa literatura, Raul Brandão.


A REFERÊNCIA DE DOSTOIEVSKI
Um dia, no JL (22.6.2004), pediram-lhe que desse um exemplo com que se identificasse. Agustina deu o do autor de «Crime e Castigo». «Sempre Dostoievski. Ainda que fosse esquizofrénico, perturbadíssimo, era um homem que tinha o mundo com ele. Não foi sem razão que mais de cinco mil pessoas acompanharam o seu enterro. Ele não era unicamente lido, era reconhecido como um grande homem. Os grandes da literatura têm de ser grandes na vida». O que está em causa é a procura do segredo da vida humana, num olhar sem medo, que torna Agustina, mais do que escritora, uma personalidade literária. «E são poucas as pessoas capazes de se despirem dos artifícios, para chegar à realidade e fazê-la reconhecer pelos outros. Porque é aí que se pode encontrar aquilo que por palavras incipientes chamaria a cura». As feridas abertas pela vida devem ser saradas com audácia. E o que é mais admirado no escritor de «Noites Brancas» é o facto de ele ser destemido. E Agustina considera que essa qualidade, de algum modo, lhe falta a si. Não tem razão. A sua intuição supera a dificuldade. Daí a persistência em imaginar, em procurar o inverosímil. A criação é essa procura persistente e impossível. No entanto, diz-nos a artista, «a mulher não tem o sentimento de desespero que o homem tem. Porque a mulher completa-se a si mesma, na sua própria criação, como ser que se reproduz e dá vida a outro ser. Portanto, ela não se exprime pela desesperação. O homem sim».


A MULHER FUTURO DO HOMEM
António Alçada Baptista gostava de afirmar, como Aragon, que a mulher é o futuro do homem, e Agustina tem uma especial capacidade para compreender a importância do desespero e o significado essencial da exigência da cura. – «talvez seja esse o seu caminho, essa busca, essa intervenção, esse estar presente com o homem». E a melhor resposta dá-a a escritora dotada de uma intuição literária única – «a mulher tem muito que dizer e sentir». E a paixão literária leva à necessidade de conhecer o ser humano como um desígnio, um destino e uma força. Enquanto Dostoievski busca um discurso moral perante a ocorrência e a justificação do crime e da violência, Agustina procede a uma leitura objetiva sobre o cruzamento entre os destinos e os sentimentos. E a culpa torna-se prodigiosa. Há a necessidade de culpa para excitar a criatividade, e a enfermidade moral do homem está em achar-se inútil num mundo que ele não criou, esse o seu drama supremo. E há o medo enraizado e ancestral que tem de ser lembrado. Por isso, a escritora teme que o europeu esteja mais ameaçado por si mesmo do que por possíveis invasores. O europeu tem dentro de si, pela indiferença e pela incapacidade de compreender, a semente da sua própria destruição. Falta, a um tempo, a consciência de nós e a consciência dos outros. E a esta luz, pensa na História: «o ideal seria conseguir (os avanços extraordinários da ciência e da técnica) sem nos destruirmos, sentindo o Outro como se fossemos nós próprios. Isso é que seria a civilização». É verdade que a romancista desconfia da civilização. Que poderá ser ela para além da decadência? Mas há uma tensão fecunda entre o destino, a vontade e a natureza. Os ingredientes misturam-se e contradizem-se e daí a necessidade de cultivar uma certa mistificação. Quina e Germa, em «A Sibila», representam o fluir do próprio tempo, a vida que vai correndo, a vontade que supera as adversidades – e o que a romancista procura descobrir alguma coisa que ultrapassa o humano e que define a continuidade. No fundo, a mistificação é a busca da resposta para os enigmas que não têm resposta no que é comum e passageiro. Não disse a romancista um dia: «o homem interroga, a mulher escolhe?». É esse lado criador que torna o entretecer narrativo fascinante. «Um lado ligeiramente mistificador e, ao mesmo tempo, uma capacidade de transformar essa mistificação numa certa grandeza criadora e de sinceridade profunda em que já atua o milagre». É assim que Maria Agustina se identifica com a sua «Monja de Lisboa». E quando, um dia, lhe perguntaram se tinha consciência de que «A Sibila» mudou, de certo modo, o curso dos acontecimentos literários entre nós, respondeu que apenas se limitara a narrar o que lhe era dado ver: «ao longo da minha experiência foi-me dado observar o comportamento das pessoas e com isso fiz romances». Tudo parece aparentemente simples, mas, de facto, não há outra matéria-prima senão o viver. Decerto que há distância entre o que acontece e o que se diz. Usando as palavras da própria autora, há sempre uma «timidez de alma», mas é a esse limite que Agustina Bessa-Luís sabe resistir – e é nessa capacidade de superação que encontramos o seu génio.                  


Guilherme d’Oliveira Martins

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