A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Utopie et Désenchantement» («Utopia e Disincanto») de Claudio Magris (L’Arpenteur, 2001) é uma extraordinária viagem literária e ética pelas obras de Goethe, Hermann Hesse, Hermann Broch, Thomas Mann, chegando a Vitor Hugo, Tagore, Nietzsche, Dostoievski, Jünger, Hannah Arendt, Pasolini e Montale. Trata-se de interpretar o tempo presente, compreendendo que «utopia e desencantamento, mais do que se oporem, devem apoiar-se e corrigir-se mutuamente. O fim das utopias totalitárias só é libertador se for acompanhado da consciência de que o bem, prometido e não realizado por essas utopias, não deve ser ridicularizado, mas procurado com mais paciência e modéstia, sabendo-se que não há qualquer receita definitiva».

A VIDA DOS LIVROS
de 9 a 15 de Julho de 2012




«Utopie et Désenchantement» («Utopia e Disincanto») de Claudio Magris (L’Arpenteur,  2001) é uma extraordinária viagem literária e ética pelas obras de Goethe, Hermann Hesse, Hermann Broch, Thomas Mann, chegando a Vitor Hugo, Tagore, Nietzsche, Dostoievski, Jünger, Hannah Arendt, Pasolini e Montale. Trata-se de interpretar o tempo presente, compreendendo que «utopia e desencantamento, mais do que se oporem, devem apoiar-se e corrigir-se mutuamente. O fim das utopias totalitárias só é libertador se for acompanhado da consciência de que o bem, prometido e não realizado por essas utopias, não deve ser ridicularizado, mas procurado com mais paciência e modéstia, sabendo-se que não há qualquer receita definitiva».


 



QUE IDENTIDADE?

«A identidade não é um dado rígido e imutável, é fluida, é um processo sempre em evolução, na qual nos afastamos continuamente das suas origens como o filho que deixa a casa de seus pais, regressando pelo pensamento e pelo sentimento, é alguma coisa que se perde e que se renova, num movimento incessante de partida e de regresso». Claudio Magris vai ao âmago do tema da identidade, que tanto ocupa a reflexão contemporânea. Perante a crise financeira, cujos efeitos sentimos duramente, torna-se necessário compreender que a tentação do fechamento e do protecionismo ao aparecer constitui um dos grandes erros que podem ser cometidos na atual conjuntura. Se nos lembrarmos do que aconteceu na Europa nos anos trinta do século passado depressa descobrimos que então houve quem pensasse que o confinamento nas soluções nacionais constituiria uma saída. Por outro lado, explorando a via dos particularismos e das identidades fechadas criaram-se as condições para a agressividade sem regulação dos nacionalismos agressivos. E chegou-se ao paradoxo de entender que uma suposta superioridade cultural legitimaria a violência e a dominação. Não é preciso explicar onde nos conduziu essa via. Quando a guerra geral destruiu o mundo ou quando o extermínio permitiu a morte de milhões de pessoas, pôde perceber-se que uma cultura de paz exige abertura e respeito mútuo bem como a perceção de que a dignidade universal das pessoas assenta na possibilidade de aceitar a imperfeição, a diversidade e o pluralismo. Hoje, porém, uma certa indiferença e um forte esquecimento determinam que se considere que a liberdade, a democracia e a paz são bens definitivamente adquiridos para o futuro. Assim também se pensou no início do século XX, julgando-se que a paz perpétua estava ao alcance da história contemporânea.


DESENCANTAMENTO E IMPERFEIÇÃO
Ao falarmos de imperfeição e de diversidade há quem tema a emergência do relativismo ético. Popper e Isaiah Berlin desmitificaram esse entendimento. São a abertura, a heterodoxia e o pluralismo que põem na ordem do dia o respeito dos valores humanos, a começar na dignidade pessoal de todos. É que ao falarmos de todos, estamos a pôr os valores fundamentais não na categoria de abstrações, mas como realidades encarnadas nas pessoas concretas. A identidade é o que distingue e o que caracteriza. A história não é um absoluto, é uma relação humana complexa, de incertezas, de dúvidas e de desígnios. Generosidade e egoísmo, heroísmo e cobardia, sentimentos nobres e perversos – eis aquilo com que sempre nos confrontamos, num diálogo com a natureza e a sociedade. A identidade é tanto mais rica quanto melhor se tornar fator de enriquecimento na relação com os outros. Estamos diante de um processo sempre em evolução. E assim afastamo-nos das nossas origens e seremos mais fiéis a elas se as pudermos enriquecer. As fontes serão tanto mais fecundas e vivas quanto mais derem lugar ao caminho baseado na liberdade e na autonomia e à síntese entre a história e a vontade de emancipação e de justiça ou a capacidade para lidar com a incerteza. Uma identidade viva e aberta vai perdendo algo e ganhando muito, designadamente na dialética entre a hospitalidade e a hostilidade, assegurando que esta não ocupa o lugar daquela. Edgar Morin tem apelado ao conceito de metamorfose, integrando a complexidade e a abertura, a singularidade e a cooperação. Há, de facto, um movimento incessante de partida e de regresso. O nosso Eduardo Lourenço salienta-o com especial ênfase, pondo essa dualidade no centro da sua heterodoxia. Isso é, de facto, particularmente evidente na cultura portuguesa: baseada num melting-pot de muitas diferenças, de mil encontros e desencontros, da sede de aventura e de busca da incerteza, de contradições entre a crença e a desilusão, entre a vontade e a dúvida. «O sonho verdadeiro, diz Nietzsche, é a capacidade de sonhar sabendo-se que se sonha». Este é o tema fundamental da literatura e da criação cultural, como sabemos bem, por exemplo, com Calderón de la Barca.


O LUGAR DA FRONTEIRA
Hoje, falamos do projeto europeu. Houve quem julgasse ver aí uma saída prometedora para muitos dos bloqueamentos encontrados. Contudo, as nuvens negras acastelam-se no horizonte. Houve e há quem confunda esse projeto com a criação de uma superidentidade, que projete outras identidade particulares, mas também outras frustrações. As fronteiras são linhas de distinção e de aproximação. Verdadeiramente, não estamos a criar um superestado ou uma identidade de substituição, mas um projeto de equilíbrios e complementaridades. A identidade europeia não pode ser feita de certezas e de uma lógica de predomínio ou de decadência (já que os extremos se tocam). Como vemos nos dias que correm, coexistem sinais contraditórios: os egoísmos nacionais ligam-se à ideia de fortaleza europeia, com duas velocidades de ricos e pobres, de virtuosos e pecadores. Não se pense, por isso, nos riscos de conflito ou de guerra apenas em território europeu. O mundo está globalmente incerto e perigoso. Utopia e desencantamento completam-se – exigindo racionalidade e emoção. «Nas épocas de crise (diz Magris), como as vividas por Virgílio ou por Broch, a poesia revela sobretudo a necessidade de ir ao fundo da crise, de percorrer o caminho no deserto e no vazio até levar apocalipticamente até ao fim a destruição do mal e com ele do mundo antigo, que deve morrer a fim de que messianicamente possa chegar o bem e nascer o novo». E o autor fala de poesia, de literatura em geral, mas fala sobretudo de liberdade e de sentido crítico – mas também de ironia: «a grandeza de Erasmo é a simbiose que opera entre fé e ironia, q1ue se ajudam mutuamente e que ajudam a viver». Todos estes temas ganham atualidade. Os valores carecem de hierarquia. Falar de humanismo universalista é pôr em marcha um novo conceito de organização internacional capaz de ligar legitimidade, legalidade (os valores frios de que fala Bobbio), o equilíbrio político e o desenvolvimento humano. A identidade, as raízes, os fundamentos originais – aí estamos perante noções que não podem ser esquecidas nem absolutizadas. Por isso o universalismo deve completar o cosmopolitismo. Não basta substituir o exclusivismo nacional ou tribal por um entendimento difuso de uma terra de ninguém. O cosmopolitismo, para ser coerente e pertinente, precisa de ser enraizado nas diferenças, sob pena de ser indiferenciador e de não se constituir como integrador da paz. Lembrar a importância das raízes é torná-las marcas de compreensão e de respeito. Falamos de compreensão no sentido de entendermos a comunidade como um lugar de diferenças. Referimo-nos ao respeito como capacidade de tornar o outro um natural complemento de nós. E a Europa como utopia referencial (e como comunidade plural de destinos e valores) tem de ser tornar um lugar de compreensão e respeito. Nesse sentido (na expressão de Miguel Abensour) é preciso colocar a utopia do lado do sonho e não da ilusão. De facto, A Europa plural deverá «estabelecer um quantum imprescritível de universalismo ético, que não poderemos sacrificar em caso algum».


Guilherme d’Oliveira Martins

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