A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

«Sebastianismo e Quinto Império», de Fernando Pessoa, edição, introdução e notas de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, Ática, 2011, acaba de ser publicado, contendo cinquenta e oito textos já conhecidos e quarenta e três inéditos. Trata-se de uma oportunidade para revisitar o pensamento do poeta, confrontando diversas leituras sobre o complexo problema do sebastianismo, que é um dos grandes enigmas da obra pessoana. Em bom rigor, não encontramos algo de inesperado, mas apercebemo-nos da complexidade da reflexão pessoana, das suas dúvidas e hesitações, e da sua capacidade de construir e de desenvolver uma mitologia.

A VIDA DOS LIVROS
de 13 a 19 de fevereiro de 2012


«Sebastianismo e Quinto Império», de Fernando Pessoa, edição, introdução e notas de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda, Ática, 2011, acaba de ser publicado, contendo cinquenta e oito textos já conhecidos e quarenta e três inéditos. Trata-se de uma oportunidade para revisitar o pensamento do poeta, confrontando diversas leituras sobre o complexo problema do sebastianismo, que é um dos grandes enigmas da obra pessoana. Em bom rigor, não encontramos algo de inesperado, mas apercebemo-nos da complexidade da reflexão pessoana, das suas dúvidas e hesitações, e da sua capacidade de construir e de desenvolver uma mitologia.



Aleister Crowley (1875-1947) e Fernando Pessoa a jogarem xadrez em Sintra (1930).


TEMPOS DIFÍCEIS
Em tempos de crise o tema da cultura e da língua vem à liça. Muitas vezes nos perguntamos como encontraremos respostas relativamente às dificuldades que sentimos, e o certo é que, como tem ficado evidente, não será com receitas contabilísticas ou de curto prazo que poderemos encontrar saídas. O arrumar da casa obriga a preservar a alma. Parece não oferecer dúvidas o facto de a chamada crise financeira (afinal crise de valores) se dever à confluência de várias ilusões perigosas: o modelo do crescimento sem limites, a cegueira relativamente à destruição do meio ambiente, a desatenção no tocante à criação e à sustentabilidade, a indiferença relativamente a valores como liberdade, justiça, igualdade, equidade e responsabilidade, o esquecimento da partilha de deveres entre gerações, a subalternização da cultura como confluência necessária entre a memória, a herança e a criatividade. Afinal, o que está em causa é a capacidade de criar valores duráveis e justos, mais do que correr atrás do sucesso imediato ou de uma lógica de roleta. É a economia, na sua aceção mais genuína, que está em xeque – economia para as pessoas. Não economia sem alma. E a verdade é que a dificuldade que hoje se sente na Europa e nos Estados Unidos tem a ver com as fortes resistências a que se mude de rumo, num sentido da sobriedade económica e financeira, isto é, de modo a que haja mais equilíbrio entre o que criamos e consumimos, sem esquecer que a coesão e a confiança exigem poupanças para investir reprodutivamente. Quem pensar que podemos regressar à prática dos últimos vinte anos, de viver do crédito barato e sem pensar na prevenção quanto ao esgotamento de recursos essenciais, engana-se totalmente.


CULTURA, EUROPA E LUSOFONIA
Olhando Portugal e a cultura portuguesa, não podemos esquecer que vivemos na encruzilhada entre a Europa e o mundo. Precisamos absolutamente da Europa, porque aí estão e estarão os nossos principais destinos do comércio e o campo estratégico. De facto, só evitaremos a periferia, a irrelevância e a mediocridade se aí inserirmos a nossa base de afirmação. O Infante D. Pedro das Sete Partidas e o Príncipe Perfeito definiram sabiamente a necessidade de uma plataforma europeia para tornar efetiva uma afirmação planetária. Não poderemos, porém, ser europeus passivos e subalternos – por muito que isso nos exija de esforço e de vontade. Mas precisamos também de uma ação extraeuropeia, com passos seguros e diversificados, sem a tentação dos pequenos resultados imediatos destituídos de consistência durável. E é aqui que temos de falar da política da língua – trabalhada em vários domínios. De facto, se a língua portuguesa é a terceira língua europeia em número de falantes no mundo, o certo é que a sua influência efetiva é insuficiente e precisa de novos avanços e de muito trabalho. Contudo, não podemos esquecer que temos neste ponto uma vantagem indiscutível, como tem sido reconhecido por muitos estudiosos da globalização – sobretudo considerando as potencialidades das economias emergentes, a começar no primeiro dos BRIC, o Brasil, e a continuar nas ligações da lusofonia, encarada como realidade multifacetada, complexa e heterogénea. A lusofonia não pode ser uma coutada, é um espaço aberto, que não pode ser confundido com qualquer tentação retrospetiva e paternalista. Não há dilema entre Europa e lusofonia – Portugal, hoje e no futuro, terá de realizar o seu desígnio, criando uma base portuguesa e europeia e procurando projetá-la universalmente, com muito trabalho, exigência redobrada e uma administração rigorosa da escassez disponível. E a política da língua terá de aproveitar todos os meios disponíveis. Desde as universidades, as escolas, os leitorados, as comunidades da diáspora até à rede de iniciativas económicas – tudo deve ser considerado. Veja-se o que se passa com o Instituto Cervantes, que articula iniciativas de defesa e difusão da língua espanhola com o British Council, numa lógica muito inteligente de complementaridade. Os protecionismos e os fechamentos só servem para reforçar fragilidades. Temos de ter presente esta perspetiva.


SEBASTIANISMO E QUINTO IMPÉRIO
Na obra de Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda constituída por textos importantes de Fernando Pessoa, que acaba de ser publicada, deparamo-nos com a consabida dificuldade de interpretação de um sentido profético misterioso. Mais importante do que qualquer providencialismo, estamos perante a necessidade de esperança mobilizadora («Ninguém vive do presente, – diz Pessoa – porque está nele. Essa é a parte da vida, que não a nossa. Vivemos ou da saudade ou da esperança. … A vida humana é feita de esperança, e por isso a vida das nações, que é a vida humana maior, é feita de profecias»). O certo é que é fundamental a intuição sobre a importância da língua, já antes assumida por Padre António Vieira: «…como já notou João de Castro Osório, Portugal não é propriamente um país europeu: mais rigorosamente, se lhe poderá chamar um país atlântico – o país atlântico por excelência. Além disso, Portugal, neste caso, quer dizer Brasil também. Como o império, neste esquema, é espiritual, não há mister que seja imposto ou construído por uma só nação: pode sê-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam as mesmas, que o serão se falarem a mesma língua». Ligando essa projeção da língua à vocação cultural portuguesa, poderemos encontrar, libertando-nos de qualquer providencialismo (contra o que a geração de 70, a «Seara Nova» e Eduardo Lourenço nos alertaram), um conceito de humanismo universalista, de que Jaime Cortesão se fez eco. «Metrópole do Mundo, Portugal criou de certo modo, cidadãos do Mundo (afirmou o historiador). Formou-se nesses homens, ao contacto múltiplo dos povos peregrinos, uma consciência nova e unitária da Humanidade. Neles, nas suas obras e nos seus atos, raiou pela primeira vez a vasta e complexa compreensão do humano, na sua riqueza e diversidade. Do humano em todos os continentes e em todas as raças. (…) Humanismo mais pragmático e moral do que filosófico e crítico, ele, dissemos nós, não era apenas uma ideia. Era menos e mais do que isso. Era uma regra de conduta. Um temperamento moral. – Uma cultura em ação. O sentimento duma unidade humana a realizar, quer pela fé, quer pelo conhecimento e pelo amor». Leia-se a entrevista de Fernando Pessoa à «Revista Portuguesa», de 13 de outubro de 1923. Aí temos o elogio o cosmopolitismo («o povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo») e a invocação da Europa: «Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho». E assim se sente o apelo forte – «Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa».


Guilherme d’Oliveira Martins

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