A Vida dos Livros

De 27 de novembro a 3 de dezembro de 2017.

“Os poetas quando são verdadeiros não morrem” – afirmou, há dias, nos Açores ao “Açoriano Oriental” Eduardo Lourenço, aquando das jornadas realizadas pelo Governo Regional e pela Fundação Calouste Gulbenkian nos 175 anos do nascimento do poeta micaelense Antero de Quental (9.11.07).

O GRANDE MICAELENSE

A atualidade de Antero de Quental é algo que merece atenção e cuidado. E a afirmação de Eduardo Lourenço assume uma especial importância, uma vez que Antero compreendeu, como ninguém, que havia uma mitologia cultural portuguesa que chegava ao fim. E assim o poeta, como tem afirmado o ensaísta de O Labirinto da Saudade, “viveu a título pessoal a morte de Deus, como se fosse uma evidência absoluta, e ao mesmo tempo sem poder aceitá-la”. E é a vivência deste paradoxo que torna o poeta uma referência multímoda da nossa cultura e o projeta para uma dimensão universal, em que ele é único no panorama português. De facto, o autor dos Sonetos pôde ser central na genial geração de que participou – tornando-se, ao mesmo tempo, sucessor numa genealogia que atinge a maturidade com Camões e chega a Bocage, Garrett e Herculano, e vai continuar em Pascoaes e na revista “Águia” e em Fernando Pessoa e no “Orpheu”, até aos nossos dias. Estamos, deste modo, num ponto de encontro e numa espécie de placa giratória, definidores da cultura portuguesa como um cadinho de diversas influências. E não por acaso encontramos nesta capacidade de abertura universalista uma das bases da heterodoxiade Eduardo Lourenço. Longe de uma identidade fechada, deparamos com a recusa de um qualquer fatalismo ou de complexos de superioridade ou inferioridade, típicos de culturas ensimesmadas. Se é verdade que sofremos de uma ciclotimia ou bipolaridade ancestral, o certo é que o sentido crítico da geração de 1870 contribuiu decisivamente, num certo tratamento de choque, para a recusa dessa enfermidade estrutural. Afinal, a projeção global da nossa língua (uma das cinco que mais crescerão no próximo século) capaz de ser expressão de várias culturas e fundamento de diversas línguas subsidiárias, como os crioulos, corresponde a essa extraordinária capacidade de integrar poética e culturalmente uma visão abrangente – não ligada a uma qualquer idiossincrasia tribal ou regional. Sem ter exata consciência disso mesmo, o poeta açoriano é, nestes termos, um autêntico símbolo da vocação universalista da cultura portuguesa, que em nada minora a importância do que nos distingue. E Antero de Quental corresponde à vivência desse universalismo cosmopolita, que mais tarde encontraremos em Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Aliás, Tolstoi e Unamuno testemunham, de modo inteiramente insuspeito, sobre a importância do nosso genial poeta. Voltando a Eduardo Lourenço: “a literatura condensa a essência de cada povo, daquilo que ele é e pretende, das vivências que o norteiam e definem”. No caso de Antero e Pessoa, “ambos se dedicaram a olhar o problema da nossa identidade, da nossa figura, da nossa imagem no mundo… Não para os olhos dos outros, mas para os nossos próprios. Isso começou com a geração de 70”. E é esse sentido crítico, a capacidade de realizar a psicanálise mítica do nosso destino que torna essa atitude como crucial no sentido de uma emancipação centrada na compreensão humana e complexa de quem somos.

QUE MITOLOGIA DA SAUDADE?

Em carta a António de Azevedo Castelo Branco de 1867, Antero diz que “a rêverie da saudade é para a alma que se deixa envolver nela como hera para os muros que veste e abraça. A princípio é um adorno, uma gala. Mas as raízes vão entrando dia a dia por entre as pedras mais bem ligadas, abrindo-as, deslocando-as. Quando se lhe acode não é mais já do que uma ruína – uma ruína encoberta e protegida por uma ilusão”. Recusa-se, deste modo, uma simplificação melancólica. Mais importante do que o culto de uma ilusão, importaria ir à substância das coisas e inserir o sentimento poético numa compreensão racional. Trata-se de uma demarcação relativamente a Garrett, como modo de superar a contradição entre razão e delírio. Haveria que caldear as tradições com a racionalidade e a procura de um caminho capaz de nos proteger das ilusões. No entanto, o poeta oscilará entre o misticismo e a “lucidez racional” – entre a poesia e a filosofia. E em carta a Oliveira Martins, de 1880, dirá: “é incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, e este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e claro daquela. Que fazer? É evidente que a poesia sai do sentimento e não da razão”. Daí a necessidade que o poeta sente do mundo das ideias – que o leva a centrar-se na reflexão que se traduzirá na publicação do fundamental ensaio “Tendências Gerais da Filosofia da Segunda Metade do Século XIX” (1890), a pedido de Eça de Queiroz para a “Revista de Portugal”. Já em 1885 dissera a Jaime Batalha Reis: “Extrair do pessimismo o otimismo, por um processo racional, tem sido afinal o trabalho da minha vida. Creio que cheguei ao termo e dou a minha Filosofia por completa e acabada. (…) A dita minha Filosofia não é original. É antes uma fusão (não amálgama) do Hegelianismo com a monadologia de Leibniz, dando de si a síntese do idealismo e do espiritualismo num terreno que à 1ª vista se parece com o materialismo. (…) O meu sistema será pois (como todos, no fundo) um ensaio de interpretação do Universo no ponto de vista do espírito moderno, interpretado esse mesmo espírito pela razão crítica. Se conseguir fazer isto satisfatoriamente, não darei por vão o meu esforço”. O pessimismo é, no fundo, um caminho, para que a consciência crítica ilumine a ação. E é da necessidade de não descurar a ligação entre pensamento e ação que resulta o paradoxo de Antero – preocupado com a necessidade de haver ideias, de existir espírito crítico e de ligar o espírito e a intervenção cidadã. Daí a complementaridade que sentia haver entre si e Oliveira Martins, pela necessidade das ideias se traduzirem em consequências práticas. E em maio de 1887 escreve ao seu dileto amigo, alertando: “Vejo-o caminhar para um pessimismo negativo, que não posso aprovar e me contrista”. E, depois de constatar a impossibilidade de penetrarmos absolutamente no problema da existência, vem dizer: “desprezar o mundo, desprezar os homens, ver o vácuo e o tédio como resíduo final de tudo, é o grande pecado do orgulho. Afinal, o que está está bem, o que vai vai bem. A nós o que nos cumpre é descobrir o como e o porquê deste paradoxo universal das coisas – na certeza de que é um divino paradoxo”. Em vez do afastamento do mundo, haveria que compreendê-lo, em nome da justiça. “A filosofia não pode prescindir dos dados da consciência; mas, por outro lado, as aspirações da consciência não podem anular os factos naturais e históricos e positivos” – diz a Ferreira Deusdado em 1888. O divino paradoxo de Antero põe em confronto a consciência e a realidade, a sensibilidade e a razão. E um tal dilema representa a singular atualidade do inesquecível poeta.

Guilherme d’Oliveira Martins

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