Crónicas de Viagem - COCHINCHINA

Cochincina – Crónica V

A herança portuguesa no Vietname e no Camboja leva-nos aos locais de memória dos portugueses por terras da Cochinchina.

26 de agosto a 9 de setembro 2017 
Guia: Alexandra Pelúcia
No âmbito do Ciclo de Viagens “Os Portugueses ao encontro da sua História”

3 e 4 de setembro – Hoi An e Cham Island: do património cultural ao natural

De Siem Reap, no Camboja, levantámos voo com destino a Da Nang, de regresso ao Vietname. Objetivos principais: visitar a cidade de Hoi An e a Cham Island, situada a 15km da costa. Ambas se encontram classificadas pela Unesco, a cidade como património mundial, a ilha como reserva mundial da biosfera.

Na língua vietnamita, Hoi An significa ‘lugar de negócio’ (Hoi) ‘pacífico’ (An). Hoi An, a antiga Faifô, foi um ativo porto de comércio entre os séculos XV e XIX, na rota marítima da seda. A ele aportavam embarcações vindas da Índia, da China, do Médio Oriente. Sabe-se que Faifô foi frequentada, a partir de inícios do século XVI, por oficiais, mercadores e jesuítas portugueses. A nossa passagem por Hoi An fez-nos assim recuar aos primórdios da presença portuguesa no antigo reino de Champa. Ensinou-nos a Profª. Alexandra Pelúcia que data de 1516 o primeiro contacto documentado de portugueses com esta parte do centro do atual Vietname, a ‘enseada da Cochinchina’, na expressão comummente utilizada à época. Por aqui passaram, em 1516, três embarcações comandadas por Fernão Peres de Andrade, capitão de Afonso de Albuquerque enviado como embaixador à China a partir de Malaca. Deu igualmente àquela costa o capitão Duarte Coelho, existindo notícia de que esteve na Cham Island em 1518. E mesmo o autor da Peregrinação fez escala nesta ilha a caminho do Japão para colaborar com a Companhia de Jesus. A Cham Island servia então como ponto de paragem para ‘fazer aguada’, então se costumava dizer. Não surpreende que naquele mar se venha hoje em dia descobrindo um relevante património arqueológico subaquático resultante de naufrágios ali ocorridos.

Disso dá conta o modesto museu que alguns de nós fomos conhecer na Cham Island, dedicado quer à flora e à fauna, quer ao património subaquático. A ilha dispõe de abundante flora e fauna terrestres e marinhas e de recifes de corais que constituem hoje um fator de atração turística – e que os viajantes do nosso grupo porventura mais curiosos… ou mais ousados, foram observar fazendo ‘snorkeling’ nas celsas águas deste Mar do Sul da China. Circunscrito a uma única sala, o museu da Cham Island permitiu-nos, todavia, um contacto quer com a biodiversidade da ilha, descrita em painéis afixados nas paredes, quer com artefactos de cerâmica azul e branca com motivos decorativos variados (pequenas garrafas, chávenas, pratos, molheiras,…) retirados de um navio naufragado no século XV, objeto de pesquisa no final dos anos 90. Património natural e património cultural combinam-se aqui na perfeição. 

Vila piscatória e portuária no passado, a ilha é atualmente um destino turístico. A sua classificação como reserva da biosfera pela Unesco, para além de justificada pelo mérito intrínseco do património natural, parece ter sido motivada pela premente necessidade de criar condições para limitar os efeitos adversos de um turismo em expansão acelerada.

Num momento emotivo, evocámos ali a memória do Professor Mário Ruivo, que foi membro da Direção do CNC até 2017 e amigo do Centro ao longo de várias décadas, e cujo papel no desenvolvimento das ciências do mar e na promoção de uma governação sustentável do Oceano é amplamente reconhecido em Portugal e no plano internacional.

Retornados a Hoi An, envolvemo-nos na atmosfera desta bonita e movimentada desta cidade de arquitetura colonial, um verdadeiro ‘living museum’, hoje um centro turístico muito concorrido. Aí se podem ver antigas casas de habitação, algumas das quais de madeira (como a Phung Hung Ancient House, de 1780, uma verdadeira preciosidade, que visitámos), templos, e outros vestígios do passado de ativo centro de comércio como a maravilhosa ponte de madeira coberta, dos inícios do século XVII, localizada no antigo bairro japonês.

Os pátios interiores, como o que pudemos ver na referida Ancient House cumprem, como nos havia informado o Arquiteto Sérgio Pereira da Silva em Ho Chi Minh City, uma função de iluminação e arejamento de casas estreitas e sem janelas, modelo de habitação que persiste até hoje no Vietname. Há indicação de que estes pátios possam ter resultado da influência dos portugueses.

A ação dos missionários portugueses em Faifô, a par, mais tarde, dos missionários espanhóis e franceses, poderá ainda ajudar a explicar o número significativo de igrejas católicas que ali se encontram presentemente. Refira-se que a população cristã do Vietname é estimada em cerca de 20%. Numa igreja católica por que passámos em Hoi An, edificada já no século XX, foi com alguma emoção que verificámos como a memória de Fr. Francisco de Pina se mantém viva. A fachada da igreja expõe uma placa assinalando (em língua vietnamita) a presença de Francisco de Pina na ilha, com referência à data do seu nascimento, em 1585 (não é indicado o local de nascimento, mas sabe-se que aconteceu na Guarda, em Portugal), à sua estada a partir de 1616 em Faifô e ao naufrágio de que foi vítima ao largo da Cham Island. Como se assinalou já, o legado mais importante de Francisco de Pina foi, reconhecidamente, a transliteração do alfabeto tradicional vietnamita, anteriormente em caracteres chineses, para caracteres latinos, um legado que perdura até hoje – e que, note-se, distingue a língua do Vietname das línguas dos países vizinhos e a demarca da língua da China, país com a qual o Vietname tem mantido ao longo dos tempos uma relação instável.

Alguns de nós, ao calcorrearmos a ilha, deparámos com um singular santuário dedicado à baleia (‘The Whale Shrine’): o povo da Cham Island venera tradicionalmente a baleia como guardiã dos pescadores e de outras ´vítimas’ do mar. O santuário, de finais do século XIX, apresenta um estilo e motivos decorativos que reencontrámos noutros templos da região, como o formato do edifício em ‘T’, a presença do dragão e do cavalo, a utilização do amarelo e do vermelho – a que a simbologia local atribui especiais significados; ou a composição de pequenos e irregulares fragmentos de cerâmica azul e branca, em particular, na escultura que representa a baleia sagrada, que nos suscitou algumas interrogações. Ter-se-á tratado de reutilização de pedaços de louça quebrada? Ficámos sem resposta …

Mas não é também propósito das viagens do CNC despertar simplesmente a curiosidade?

07 de setembro de 2017 ® Maria Eduarda Gonçalves

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