Notícias

“Boliqueime a terra e as gentes”

A Galeria de Arte do Convento Espírito Santo, em Loulé, recebe a exposição que tem como curadores Francisco d’Oliveira Martins e Maria do Céu d’Oliveira Martins.

Boliqueime toada à minha terra.

Já era quase meio-dia, naquele 4 de agosto.

Meio-dia na Torre sineiro.

O céu azul, as paredes das casas de branco brilhante, sombras claras a contraluz refletem.

Oazul do céu lembrando Marrocos do mediterrâneo próximo.

Casa brancas diversas, sombreadas de azul em torno da madre Igreja se arrumam, descendo encosta suave qual arranjo cubista.

Ao fundo daquela rua direita, o verde variegado da várzea se avista, salpicada de alfarrobeiras de cor forte e amendoeiras de verde já seco anunciando a canícula do verão.

Sucessivos planos de cores mais suaves, caminham direito à linha do mar azul intenso onde mergulha céu transparente e ameno.

É meio-dia daquele 4 de agosto.

De chapéu de palha coberta e escuro vestida, D. Rosa, a Sra. Rosa, empurra carro com duas infusas canada vinda o chão salpicando.

Duas carroças escarlate de amarelo calçadas lentamente qual metrónomo de rolado sonoro trazem novidade.

A cigarra cala.

Viva Sr. Edmundo diz qual almocreve o Sr. Carlos, Joaquim da Ponte na sombra de sua loja, anima tertúlia, comenta as notícias do correio vizinho.

O Sr. Jacinto de ar grave saúda o pároco Sebastião de negro vestido.

É meio-dia na rua direita naquele 4 de agosto.

Esta é a terra da minha mãe.

Esta é a terra dos meus avós.

Esta é a minha terra Boliqueime.

Francisco D’Oliveira Martins


Boliqueime vem-nos à memória…

“As cigarras cantarão o silêncio de bronze”

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto.

Ah! Boliqueime vem-nos à memória! A terra e as gentes merecem a nossa lembrança. Os azuis intensos e límpidos, os vermelhos da terra, os amarelos e os verdes das árvores – chamam-nos à vida. Estamos entre Barlavento e Sotavento – rigorosamente no centro algarvio, de leste para oeste e de norte para sul, onde a Serra abraça o Barrocal, descendo serenamente até ao mar, à longa frente de falésia que define a transição. Lembro os verões da minha infância. E recordo os preparativos, o alvoroço, a expectativa, o gozo do reencontro. O Avô Mateus vinha buscar-nos. A minha Mãe providenciava tudo.

O momento era único: a casa, as árvores, as flores, os animais, as coisas e sobretudo as pessoas. A lembrança juntava-se à surpresa.

E a aventura começava na Estação de Sul e Sueste até ao Barreiro.

O encontro com o Algarve exigia o caminho-de-ferro, e depois passou a obrigar, de automóvel, a longuíssima serra do Caldeirão…

O comboio deixava-nos em Albufeira. E chegávamos à terra da promissão. Ficavam para trás a cidade, começava o ar livre, a imaginação, a autonomia, tudo. O primeiro almoço aguardava-nos – canja de galinha e arroz de cabidela, e antegozávamos essa oportunidade, que a Avó Ana especialmente caprichava. Era a melhor cabidela do mundo. À distância, a saudade traz-nos os cheiros, os sabores, os sentimentos, os sorrisos especialmente gostosos e belos.

Os sabores eram inesquecíveis, os figos secos, os doces de amêndoa, açúcar e ovos, os dom-rodrigos, os morgados e as peças de escultura da doçaria de massa de amêndoa – frutas e peixes recheados de ovos-moles… O poeta fala da «raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira». Tínhamos de aproveitar bem a luz do dia. Os dias de Verão eram longos. Quando a noite caía, ou havia o luar de Agosto e da desfolhada, ou vinha o breu e os candeeiros de petróleo.

E um dia, no final dos anos cinquenta, veio a eletricidade e a televisão.

Mas o essencial era a paisagem luminosa sobre a extensão de mar, num panorama que vai da ria Formosa até Albufeira. Entre hortas e pomares e árvores de sequeiro, havia um mundo – do silêncio às cigarras, passando pelo rumorejar do regadio, com o inconfundível cheiro da terra.

Havia figos durante todo o Verão, dos temporãos aos serôdios. A minha Avó fazia questão de os ter das diferentes qualidades, para que nunca faltassem em braçados e cestas. As amêndoas eram deliciosas e quanto às alfarrobas não suspeitávamos das suas mil utilidades. De Loulé, o Avô falava-nos com entusiasmo do buliçoso comércio. António Aleixo e os seus poemas repentistas eram recordados. E quantas conversas amenas com o Dr. Joaquim Magalhães… Ao folhear a “Monografia do Concelho de Loulé” de Ataíde de Oliveira, percebíamos a riqueza de um concelho marcado pela ligação à serra, através das vias dos almocreves e das memórias longínquas do Remexido. As mouras encantadas, o romanceiro, as lendas diziam-nos da multiplicidade de influências – e, quando lemos “O Dia dos Prodígios” de Lídia Jorge, entendemos os muitos mistérios e a enorme capacidade de efabulação desta gente fantástica. Maria Aliete Galhoz e José Ruivinho Brasão têm sido incansáveis na revelação desses mistérios. E Orlando Ribeiro percebeu bem o fenómeno natural: “o algarvio leva consigo o jeito de acomodar-se, o ar aberto, acolhedor, o gosto de rir e de falar, com a vivacidade que lhe deu fama ele é, na posição como no temperamento, o mais meridional dos portugueses”. E o ser vivaz contrasta com a melancolia, ditada pela estranheza dos dias de vento de levante. Porém, sente-se o folguedo algarvio, o colorido, a diversidade, entre a serra e o mar, e a luminosidade sem igual do Mediterrâneo. Teixeira Gomes diz-nos:

“Que lindíssima terra esta, exclamava eu, ainda na passagem da ponte (…) O céu alaranjado empanava-se de escumilhas doiradas com franjas de púrpura, e pelo cetim do rio corriam, leves, para a barra, as velas cor de açafrão, cruzando outras, brancas de cal e curvas, que cortavam o ar com o movimento sereno de asas livres no espaço”. 

Boliqueime de hoje e de sempre – quantas memórias, quantas tradições!

Guilherme d’Oliveira Martins

Galeria do Convento do Espírito Santo
Rua D. Paio Peres Correia, n.º 21 8100-564 Loulé

De terça a sexta-feira, das 9h30 às 17h30, e ao sábado, das 9h30 às 16h00.

Entrada Livre

Subscreva a nossa newsletter