A Vida dos Livros

De 13 a 19 de março de 2017.

«Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo» nasceu em 1941, por iniciativa de António Ferro, tendo publicado quatro séries até 1973, dentro da preocupação de promover, interna e externamente, Portugal como destino turístico.

UMA REVISTA NOVA

Quando hoje voltamos a folhear a revista «Panorama» fica-nos uma dupla sensação – a da grande qualidade gráfica e a da presença de um conjunto de artistas com reconhecimento geral, sobretudo quando nos reportamos à fase inicial, em que António Ferro tem uma significativa margem de manobra na capacidade de atrair os melhores artistas do momento. As ilustrações de Bernardo Marques, Emmérico Nunes, Ofélia Marques, Paulo Ferreira, Manuel Lapa, Eduardo Anahory ou Júlio Gil marcam a identidade da revista. Para Ferro, seria importante apostar na vertente das artes. E diz: «Enganam-se os homens de ação (…) que desprezam ou esquecem as belas-artes e a literatura, atribuindo-lhes uma função meramente decorativa (…). A política do Espírito (Paul Valéry acaba de fazer uma conferência com o mesmo título) não é apenas necessária, se bem que indispensável em tal aspeto, ao prestígio exterior da nação: é também necessária ao seu prestígio interior, à sua razão de existir». Não por acaso, o Secretário da Propaganda Nacional vai buscar um título muito prestigiado para a nova revista – nem mais nem menos do que o do órgão da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, que fora dirigida por Alexandre Herculano a partir de 1837, contando com a participação das principais figuras culturais portuguesas da época, como António Feliciano de Castilho, Oliveira Marreca, Camilo Castelo Branco… Lembremo-nos que a revista romântica apresentava um mote «positivo, otimista, apaziguador, apelando ao entendimento entre todos os liberais» – não tendo entrada os assuntos políticos… Agora os tempos eram outros e o conteúdo cultural e científico da velha revista não seria replicado no novo órgão de comunicação. No entanto, a qualidade gráfica tornar-se-ia a marca que compensaria um conteúdo essencialmente de divulgação, sobretudo centrado em iniciativas oficiais ou próximas, apesar de algumas colaborações serem assinadas por especialistas de prestígio, como Reynaldo dos Santos, João Couto, Diogo de Macedo ou Reis Santos. Contudo, António Ferro é, sem dúvida, quem marca a revista nas suas origens e na sua missão, nitidamente orientadas por objetivos de divulgação e propaganda, com um sentido de favorecimento económico – compreendendo a importância crescente do turismo no mundo – e de promoção do regime político. Os sucessores de Ferro seriam, aliás, essencialmente continuadores do projeto, sem carácter inovador. Referimo-nos a António Eça de Queiroz, José Manuel da Costa, Eduardo Brazão, César Moreira Baptista e Pedro Feytor Pinto.

UMA LÓGICA PREMONITÓRIA

Quando hoje regressamos à memória histórica da revista, temos de compreender a sua natureza e o facto de o seu fundador ter entendido a importância da ligação entre o turismo e a cultura. Essa compreensão conduz, naturalmente, a que seja a fase inicial a mais interessante da vida da revista, uma vez que estamos perante a sua natureza precursora e o ativismo do seu fundador. Como afirma Reis Torgal, A. Ferro é, sem sombra de dúvidas, um «intelectual do Estado Novo», como o foram D’Annunzio, Marinetti ou Gentile em Itália, supondo esse conceito «um certo nível de produção e intervenção cultural e uma problematização de conceitos, servidos por uma boa leitura, mais ou menos complexa ou simples, de obras e de autores, de estéticas, de sociedades, de políticas e de religiões». E é esse perfil que nos permite hoje debruçarmo-nos sobre a originalidade e a importância do seu papel, fora de juízos de valor ideológicos, que pecariam sempre por anacrónicos. E que visa o ativismo de António Ferro? Valorizar o que os portugueses tinham para dar. E o seu percurso pessoal e intelectual não permite fechar-se numa lógica provinciana. Dir-se-ia que há um culto paradoxal da lógica nacionalista – já que, defendendo-a, não esquece o cosmopolitismo que os modernistas representam. Essa coexistência de fatores diferentes nota-se na revista «Panorama», em que a estética moderna vive paredes meias com a tradição e a lógica conservadora. O folclore, a aldeia mais portuguesa de Portugal, a simbologia popular não deixam de ser cultivados com as audácias de quem não esquecia a participação na aventura de «Orpheu».

O JORNALISTA DE OUTRORA…

O jornalista de outrora não esquecia o que dissera um dia nas termas de Vidago, sobre quem jamais conseguiria divertir-se, levando consigo uma «apagada e vil tristeza» «em que a raça se afunda, que dá a Portugal uma atitude sonâmbula, mediúnica, que espectraliza os seres em árvores, que dá às árvores uma expressão humana». Do mesmo modo, não esquecia a «povoação abandonada, suja, uma terra maldita, uma terra de farrapos, de gatos lazarentos, de mendigos torpes, de crianças que são chagas», a propósito de Moledo do Minho… Como poderia haver turismo nessa vil tristeza, nesse abandono ou entre tais farrapos? Mas também lembrava o que dissera de José de Almada Negreiros quando o apresentou no dia em que leu em público a genial «Invenção do dia claro»: «Imaginário quer dizer, para mim, um profissional do Sonho, aquele que desenha imagens no papel, Ingres da Alma»… E não dissera de Mário de Sá-Carneiro: «quando aqueles que se esquecem dele estiverem todos esquecidos, Mário de Sá-Carneiro será lembrado»? Afinal, tal como os seus companheiros de «Orpheu» tinham desejado culturalmente, haveria que abrir portas ao Imaginário. Se virmos o pensamento de António Ferro sobre o turismo, há uma premonição sobre a importância futura dessa indústria – apesar da guerra mundial parecer contradizer essa tendência inexorável. O tempo longo veio a confirmar a intuição do intelectual, desmentindo, porém, a lógica autárcica… Só uma economia aberta e não protecionista poderia favorecer a livre circulação dos turistas… Havia uma inteligência fina que antecipava as grandes tendências, mas descria agora dos ideais republicanos que abraçara outrora – preferindo a mão dura de um Estado forte. Percebe-se, contudo, como a personalidade irrequieta do fundador da nova revista era complexa e contraditória. E essas características permitiram antecipar a tendência dos factos e antever o desenvolvimento da ligação indelével entre cultura e turismo…

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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