A Vida dos Livros

De 6 a 12 de fevereiro de 2017.

«D. Carlos de Bragança, Naturalista e Oceanógrafo» de Mário Ruivo (Fundação da Casa de Bragança, 1958) é uma pequena obra preciosa, onde se encontram dois grandes oceanógrafos portugueses, o rei D, Carlos, e Mário Ruivo, que há pouco nos deixou – permitindo-nos compreender a importância para Portugal da Costa Marítima e do seu conhecimento.

UM ENCONTRO INESQUECÍVEL

Foi há cerca de trinta anos, num pequeno restaurante da Calçada do Combro, com Helena Vaz da Silva e António Alçada Baptista, que foi delineada com Mário Ruivo o que viria a ser uma nova Comissão Nacional da UNESCO. O António disse que o Mário seria indispensável – e, com o extraordinário conhecimento das pessoas que tinha, depressa percebemos que esse era o melhor dos conselhos. E nunca mais deixámos de colaborar nas mais diversas tarefas. Estar com o Mário era, ao mesmo tempo, ouvir as suas histórias de uma larguíssima experiência política e científica, mas também vê-lo de mangas arregaçadas (com o inevitável fato verde seco) a agir e a falar para meio mundo para a defesa da causa do que designávamos como o S da UNESCO, ou seja, a ciência. E quem diz a ciência, não pode esquecer o ambiente, os direitos humanos e a intervenção política. Desde o MUD Juvenil, o Mário Ruivo foi um militante aberto a todas as causas. Foi assim até nos deixar – sempre com o seu entusiasmo jovial. O biólogo nunca deixava de pensar, de propor, de agitar, de conspirar. Mas havia sempre um ponto em que não transigia – um enraizado patriotismo universalista. E essa qualidade vimo-la exercer ao lado Federico Mayor, o mais influente dos últimos diretores-gerais da UNESCO, sendo o Mário a verdadeira alma da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI). E o seu amigo catalão foi sempre um aliado. Impressionante era a capacidade de articular peças diferentes e personagens aparentemente distantes e heterogéneas. Quando em 1998 foi definido o Ano Internacional dos Oceanos, celebrando cinco séculos da chegada de Vasco da Gama á Índia, foi ele que mexeu os cordelinhos desde o início – apesar de mil resistências e desconfianças. Foi o seu prestígio que funcionou, aliado a muitos outros contributos. E houve a Conferência Internacional de Oceanografia no CCB, a Expo-98 com o tema dos Oceanos e, depois, a Comissão Mundial Independente para os Oceanos, presidida por Mário Soares – e animada pelo incansável labor do oceanógrafo, de que resultou o relatório Oceano: Nosso Futuro. No entanto, sendo o Mário Ruivo um homem de equipas, fazia sempre questão de dar o seu a seu dono. Um êxito nunca é de uma pessoa só. A verdade é que ele era o elo de ligação, capaz de fazer desencadear os movimentos tectónicos, que amiúde referia, e que punham as forças em movimento. As suas metáforas de cientista e biólogo estavam sempre presentes.

CAIS, SAUDADE DE PEDRA

Quando nos fomos despedir dele na Gare Marítima de Alcântara, na partida para um grande viagem marítima, na presença dos painéis de Almada Negreiros, com a memória da Nau Catrineta e ouvindo o João de Ávila a dizer a «Ode Marítima», todos nos lembrámos do que estava a dizer-nos naquela circunstância: «Estou a flutuar»… A paixão do Mar era poderosa e inesquecível. “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! / E quando o navio larga do cais / E se repara de repente que se abriu um espaço / Entre o cais e o navio, / Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente…”. Com que prazer viu chegado a bom porto o seu tão ansiado Do Mar Oceano ao Mar Português (edição CTT, 2015). Sob a sua criteriosa coordenação temos aí o mais completo repositório sobre os desafios do Mar, para um país médio, com responsabilidades de grande potência. E não poderemos deixar de ter presentes esses desafios, que Mário Ruivo profeticamente assumiu: “Portugal está confrontado com a expansão do território sob soberania nacional na plataforma continental para quase 4 milhões de quilómetros quadrados. O alargamento da plataforma continental é uma fonte de oportunidades para um desenvolvimento sustentável (económico, social, cultural e institucional) apoiado nos setores que utilizam os recursos do mar português, implicando ações concertadas face a um bem comum, que, pela sua natureza, cria ao Estado português uma responsabilidade acrescida no conhecimento e na gestão sustentável”.

Os valores e princípios que o animaram, ao longo da vida, foram sempre claros. A liberdade como fundamento da democracia. A solidariedade como sequência do cuidado pelos outros. O rigor como marca da sua paixão pela ciência. A curiosidade como aguilhão da capacidade criadora. O respeito como demonstração de tolerância. A generosidade como sinal de entrega. A amizade como apanágio da sua personalidade. A biografia fala por si. Quando esteve em Roma na FAO, foi um auxílio precioso nos contactos com as forças políticas que apoiavam a causa da democracia em Portugal. E falamos de todos os partidos, a começar na Democracia Cristã – a ponto de ter sido ele o elo que permitiu a António Alçada Baptista abrir as portas internacionais, depois de 1974, a Adelino Amaro da Costa. Também foi em sua casa que Mário Soares terminou o Portugal Amordaçado. Depois da Revolução, foi Secretário de Estado das Pescas e Ministro dos Negócios Estrangeiros nos governos provisórios, foi chefe da delegação portuguesa nas negociações para a Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar (a chamada Lei do Mar das Nações Unidas). Com José Mariano Gago, então presidente da JNICT, no final dos anos oitenta, foi um dos animadores das Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica, onde as ciências do mar tiveram significativa relevância, estando Mário Ruivo ao lado de Luiz Saldanha. E quando José Mariano já estava no Governo não podemos esquecer o Programa Dinamizador das Ciências e Tecnologias do Mar. Mário Ruivo esteve sempre na linha da frente. Em 2000 foi fundador do EuroOcean, centro europeu da informação em ciências do mar. a que presidiu – além de ter sido um dos artífices da candidatura de Lisboa para sede da Agência Europeia para a Segurança Marítima, criada em 2002. Presidia ao Forum Permanente para os Assuntos do Mar e ao Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

UM NOVO UNIVERSALISMO

Perante tão impressionante percurso da nossa maior referência internacional nos assuntos do Mar, o grande desafio que se nos coloca é o de tornar vivo este desígnio. Como disse Mário Soares: “Precisamos de forjar uma relação, uma nova relação ético-política entre a humanidade e os oceanos, uma relação com uma base política e jurídica que crie uma atmosfera de partilha e solidariedade e que proporcione um novo universalismo centrado no conhecimento dos oceanos”. Como ensinou Mário Ruivo, não basta falar do mar ou fazer propostas bem-intencionadas. Há, sim, que mobilizar vontades internacionais – criar parecerias e formas eficazes de cooperação. Não esquecemos o que disse sobre as campanhas oceanográficas do rei D. Carlos, que “permitiram a um certo número de jovens biologistas portugueses contactar diretamente com a grande escola do mar e da vida a bordo. Vida que não se coaduna com egoísmos e vaidades; a vida que exige atitudes francas, forja a amizade, a camaradagem, o espírito de sacrifício, o entusiasmo, bases fundamentais de todo o trabalho em equipa”.

Guilherme d’Oliveira Martins

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