A Vida dos Livros

De 10 a 16 de outubro de 2016.

«A Selva» de Ferreira de Castro (Cavalo de Ferro, 2014) é um dos romances portugueses mais traduzidos no mundo e uma das obras mais referidas da nossa literatura do século XX. Hoje merece ser revisitada e relida por se tratar não só de um elo na cultura luso-brasileira, mas também uma análise perene do género humano. Assinala-se este ano o centenário da primeira obra do autor – «Criminoso por Ambição» (1916). 

REENCONTRAR UM ESCRITOR

Falar hoje de José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) é referir um autor injustamente pouco lembrado, que conheceu uma grande notoriedade em vida, mas que foi, de algum modo, vítima da sua própria celebridade. Continua, porém, a ser um dos autores portugueses com maior divulgação internacional, merecendo a sua obra uma releitura atenta e uma revisitação necessária. De facto, o tempo pode ter tido a virtude de dar ao escritor e à sua obra uma importância que o futuro deverá confirmar, pela sua força e pela atualidade da compreensão do género humano – que outros seus contemporâneos não conseguiram. Lembremo-nos de «A Selva» (1930), a sua obra porventura mais conhecida e com inequívoca densidade literária, cultural e humana. A experiência brasileira do seringal, da extração da borracha, no Pará, baseada na vida vivida pelo muito jovem emigrante que o escritor foi, ganha hoje uma importância muito especial, ao aliar a vitalidade literária e antropológica à verdade testemunhal. Ler «A Selva» é não só tomar contacto com um vibrante relato literário e pessoal, mas também conhecer a vida da emigração para o Brasil no início do século XX. Alberto é, com as naturais distâncias que o próprio autor estabelece, uma figuração do próprio Ferreira de Castro que bem conheceu o seringal Paraíso, nas margens do rio Madeira, afluente do Amazonas. Jorge Amado, Albert Camus, Stefan Zweig ou Vitorino Nemésio salientaram, com inteira justiça, o inequívoco valor da obra – e o certo é que o tempo irá, por certo, confirmar as razões que levaram a tais apreciações. Ferreira de Castro reganha uma importância na literatura da língua portuguesa, que em muito ultrapassa razões circunstanciais que levaram à celebridade e ao sucesso editorial alcançados em vida. «A Selva», pode dizer-se, é uma obra luso-brasileira – qualidade que é singular e que pode constituir exemplo para o desenvolvimento de uma cultura partilhada e de uma língua capaz de favorecer um fecundo diálogo intercultural. Esses fatores reforçam-se com o tempo e constituem base para um intercâmbio literário que as novas gerações não deixarão de considerar. Digo-o quanto é certo que, para a minha geração, se trata de um bom reencontro… Fomos marcados pela omnipresença literária de Ferreira de Castro. Quando surgiram novas correntes e tendências, a força testemunhal e realista do autor de «Emigrantes» entrou um pouco na penumbra, como aconteceu com outras figuras da sua geração. Hoje, porém, depois de um tempo de pousio (que é sempre saudável) percebemos que há razões suficientes e novas para voltar a dar atenção ao romancista de Oliveira de Azeméis, cuja obra tem perenidade.

 

UM CONTEXTO DE DRAMA

Juca Tristão, o magnate, marca pela ganância, pelo desejo de lucro imediato e pela exploração humana, de que vive. Os capatazes Balbino e Caetano procuram contratar gente muito pobre, que vive o drama da secura do Ceará, e que muitas vezes não resiste à própria viagem a que são obrigados. A exploração é cega e desumana, a dependência da cachaça turva as mentes, as dívidas dos pobres acumulam-se e geram uma nova escravatura… Alberto é monárquico e sai de Portugal com a implantação da República. Chegado ao Pará é vítima da crise da borracha e vê-se desempregado. O apoio que seria esperável por parte de um familiar, o tio Macedo, não acontece de facto e o jovem tem de ir para a selva. Aí encontra um mundo de violência e de incerteza, em que os exploradores da borracha entram em choque com as tribos locais, com valores tradicionais, incompatíveis com a lógica do ganho a todo o custo… Manifestam-se os instintos mais primários e desumanos, fruto do isolamento e das necessidades desreguladas. O parasitismo e a dependência, que se notam no desenvolvimento da flora, projetam-se nas relações humanas. A personalidade de Alberto vai-se modificando, ora pela dureza da experiência, ora pela tomada de consciência da necessidade de compreensão humana… Deixa de ser altivo e elitista, e é obrigado a entender a injustiça e a podridão. O contacto com os outros, com os seus dramas, vinganças, complexos permite-lhe entender melhor o mundo que o cerca… Quando Alberto assume funções de responsabilidade na empresa começa a aperceber-se da perversidade das relações profissionais e humanas e de como Tristão manipula e condiciona quem para ele trabalha. E sente uma contradição íntima – a consciência das injustiças e o desejo de ter um maior ganho e de melhorar a posição social e a situação económica… A revolta e a sede de vingança do Negro Tiago obrigam Alberto a superar uma certa cegueira humana que o atingira… Como é falível a administração da justiça! Como são falsos alguns critérios formais de legalidade!… E Alberto toma consciência de que as estruturas políticas dificilmente salvaguardam a liberdade e a justiça, as desigualdades e os conflitos sociais desregulados atingem proporções inaceitáveis. O jovem Alberto compreende a importância da autonomia e da liberdade, em lugar da conservação das instituições. Os direitos fundamentais tornam-se pilares essenciais da dignidade humana – que obriga à consciência dos outros, à exigência de humanidade e à salvaguarda da singularidade. 

Guilherme d’Oliveira Martins

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