A Vida dos Livros

De 20 a 26 de junho de 2016.

A «Crónica dos Feitos Notáveis que se passaram na conquista de Guiné por mandato do Infante D. Henrique» de Gomes Eanes de Zurara é um dos documentos fundamentais para a compreensão da decisão portuguesa de planear e concretizar as viagens pelos cinco continentes.

MOTIVOS PARA NAVEGAÇÕES

No capítulo sétimo da chamada «Crónica dos Feitos da Guiné», Gomes Eanes de Zurara apresenta cinco motivos para o interesse das navegações atlânticas. Antes de mais, lembra que o Infante D. Henrique não só manteve uma frota para defesa de Ceuta, mas também realizou o corso nas costas do Mediterrâneo. E quais as razões para a exploração da costa africana? A primeira era o desejo de conhecer a terra que estava para além das Canárias e do Cabo Bojador. A segunda correspondia à vontade de encontrar cristãos e portos seguros para estabelecer relações comerciais – pois se poderiam trazer para estes reinos muitas mercadorias que se haveriam de bom mercado. A terceira seria poder avaliar com rigor o poderio islâmico naquelas paragens africanas. A quarta dizia respeito ao facto de o Infante nunca ter encontrado na Cristandade aliado que o acompanhasse na guerra contra o poderio do Islão, pelo que desejava saber se em África haveria algum Príncipe cristão que se dispusesse a ajudá-lo em tal empresa. Finalmente, a quinta razão relacionava-se com o dilatar da fé cristã em novos territórios, ganhando para ela «todas as almas que se quisessem salvar. Como é sabido, Zurara escreve em 1452-53, em vida de D. Henrique, com acrescentos após a morte deste, em 1460. Deteta-se, assim, a crença na existência do Presbítero João (Preste João), rei mítico, primeiro localizado na Ásia, como refere o «Livro de Marco Polo», e depois em África, na Etiópia, onde se sabia haver uma tradição copta muito marcada. É já neste último sentido que D. João II envia a importante missão de Afonso de Paiva e de Pêro da Covilhã ao Cairo e ao Mar Arábico. Depois de inúmeros sinais contraditórios, desde a alusão aos cristãos nestorianos na Ásia até à comunidade de S. Tomé no Kerala, no sul do subcontinente indiano, tudo foi alvo de cuidadoso escrutínio, chegando-se à informação sobre a Etiópia. Fica sempre, porém, o enigma sobre o momento em que pode falar-se de Plano da Índia. Até 1460 é muito cedo, mas, designadamente pelas informações trazidas pelo Infante D. Pedro da sua viagem europeia, há a compreensão de que o comércio mediterrânico e o domínio político, militar e geoestratégico em torno da Terra Santa é crucial para o futuro. E a verdade é que Zurara se dá conta da necessidade de um plano que prolongue o espírito de cruzada, mas não esqueça a componente económica. Não se esqueça, além do mais, a queda de Constantinopla, cabeça do Império Romano do Oriente (1453), que dará uma importância acrescida à tentativa de chegada ao Mar Arábico pela rota à volta da costa de África… O apelo do Papa Calisto III (1455) para uma cruzada contra os turcos, depois da queda de Bizâncio, não tem eco ou sucesso, o que reforça a opção portuguesa de concentrar meios na intervenção africana. Importa, ainda, lembrar a sucessão de acontecimentos que afirmaram e consolidaram as navegações africanas dos portugueses. No muito curto reinado de D. Duarte (1433-1438) ocorre a passagem do Cabo Bojador (1434) e o desastre de Tânger (1437), tendo em 1441 tido sucesso a primeira operação comercial com aquisição de escravos (mercê dos aprisionamentos feitos por africanos), sendo em 1444 atingida a Costa da Guiné – então só um terço dos navios que navegavam nessa área pertenciam á iniciativa do Infante. Em 1455 a Bula do Papa Nicolau V concede ao Rei de Portugal a propriedade exclusiva das terras e mares conquistados ou a conquistar…

DEPOIS DA MORTE DO INFANTE D. HENRIQUE

Depois da morte de D. Henrique (1460), chegados os portugueses à Serra Leoa, há o arrendamento pela coroa ao mercador de Lisboa Fernão Gomes da exploração da costa africana – correspondendo à missão de explorar 100 léguas em cada ano. É o tempo da Costa do Ouro e da zona da Mina, num momento em que a intervenção do Estado abranda até pelo envolvimento de D. Afonso V na guerra da sucessão de Espanha (1475-76), sendo retomada a exploração direta com o Príncipe Perfeito. Entretanto, o acesso ao Golfo das Guiné permite o acesso ao comércio da malagueta, do marfim e do ouro – que irão permitir (com o comércio dos escravos) a sustentabilidade económica das navegações planeadas. O reinado de D. João II (1481-1495) marca uma viragem significativa na organização do Estado e na estratégia da expansão marítima – com a política do segredo e o reforço do «mar fechado». Houve avanços significativos no conhecimento e no domínio dos circuitos comerciais na costa ocidental africana, bem como na aprendizagem do regime de ventos e no cálculo da latitude a partir da inclinação solar e no tocante aos controlos costeiros do Sul do Atlântico. «Tempos de coruja, tempos de falcão» – eis o lema prático do Príncipe Perfeito. A centralização política, a limitação dos poderes da alta nobreza (com as mortes dos Duques de Bragança, D. Fernando, e de Viseu, D. Diogo, e de seus apoiantes), a aliança com Castela, o casamento do herdeiro com a filha dos Reis Católicos, a tentativa de criação de uma economia dominante na Península Ibérica que pudesse ser, na entrada do Mediterrâneo, base sólida de um Império universal – estas são as bases da política de D. João II. O comércio africano, não envolvia as mercadorias e o dinheiro do reino. Para trocar com os bens obtidos na costa de África, designadamente ouro e escravos, usava-se o trigo de Marrocos e das ilhas e as mercadorias da Europa, donde se recebia têxteis, tapetes, cavalos e latão. Em 1482 é fundada a importante feitoria de S. Jorge da Mina, entreposto fundamental para o financiamento das navegações, supondo-se que até 1530 os portugueses teriam transportado cerca de 150 mil escravos… Depois das expedições de Diogo Cão até ao Zaire e da chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo da Boa Esperança, tendo sido trazido um emissário do Rei do Congo (1487), há a decisão de D. João II de destacar dois enviados para alcançarem a Etiópia, a fim de obterem informação sobre o comércio da Índia. Afonso de Paiva morreu, mas Pêro da Covilhã viajou pelo subcontinente indiano, pela Pérsia e pela África Oriental – tendo enviado a partir do Cairo uma relação do que vira e ouvira. Duvida-se, todavia, da chegada ao destino ou da utilidade efetiva dessa informação. Pêro da Covilhã fixar-se-ia na Etiópia, onde mais tarde partilhou algumas das suas informações… Atrás do envio destes espiões estaria o interesse nas especiarias da Ásia, cuja comercialização na Europa estava controlada pelos Venezianos, através do Mar Vermelho e do Mediterrâneo.

A INTERRUPÇÃO DAS NAVEGAÇÕES

Há diversos mistérios por desvendar relativamente à interrupção das navegações depois de 1488. A lista de razões é conhecida: teriam sido resistências cortesãs orientadas para beneficiar o comércio do Norte de África? Seria um tempo de espera para uma mais sólida preparação? Seria uma antecipação ou prevenção da eventual chegada de Colombo às Caraíbas? Seria a previsão de um conflito gerado pela reivindicação da conquista perante o reconhecimento pelo Papa aragonês Alexandre VI? O certo é que, entretanto, o casamento do Príncipe D. Afonso com D. Isabel filha dos reis católicos gorar-se-ia com a trágica morte (1491) do herdeiro de D. João. O Tratado de Tordesilhas (1494) torna-se necessário já não para regularizar as influências no Atlântico Norte, mas para definir a divisão do Mundo. O avanço do meridiano para ocidente do Arquipélago de Cabo Verde até 370 léguas, envolve um outro enigma: seria o Brasil já conhecido? Teria Duarte Pacheco Pereira feito o reconhecimento do território? A verdade é que as circunstâncias da segunda viagem à Índia capitaneada por Pedro Álvares Cabral apontariam nesse sentido. Em 1495 o Rei morre no Alvor e em 1497 retomam-se as navegações. E que buscam os navegadores da frota de Vasco da Gama? Na fórmula repetida: cristãos e especiarias. Mas oiçamos João de Barros no ponto crucial da decisão: «e porque D. Manuel com estes reinos e senhorios, também herdara o prosseguimento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado – que era o descobrimento do Oriente por este mar Oceano – quis logo no primeiro ano do seu reinado acrescentar à Coroa deste reino novos títulos. Sobre o qual caso (…) estando em Montemor-o-Novo teve alguns conselhos gerais em que houve muitos e diferentes votos e os mais foram que a Índia não se devia descobrir». Mas o Rei decidiu avançar! Há, pois, um caminho gradual até chegar à Índia, que se inicia com o Infante D. Henrique, ainda sem objetivos últimos definidos, aliando o espírito de cruzada e finalidades político-económicas, que se encontram delineadas por Zurara, em temos que merecem uma especial atenção, pelo rigor estratégico e um especial aproveitamento das circunstâncias internacionais, em especial o reforço do poder turco no Mediterrâneo oriental.   

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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