A Vida dos Livros

De 23 a 29 de novembro de 2015

René Girard (1923-2015) é um dos pensadores contemporâneos mais estimulantes no tocante à análise da violência e da sua superação nas sociedades humanas. A partir da noção de «violência mimética», da leitura da Bíblia e do cristianismo, o autor de «Le Bouc Émissaire» (Grasset, 1982) procurou uma explicação para evolução divergente entre as religiões arcaicas e a judaico-cristã no tocante aos mitos violentos originais.

DA LITERATURA À ANTROPOLOGIA RELIGIOSA
Vindo da Literatura, Girard exerceu o seu magistério nos Estados Unidos, primeiro como professor de literatura francesa, a partir de 1947, depois no estudo das relações entre a literatura e a antropologia religiosa na Universidade John Hopkins, em Baltimore (1957) e por fim em Stanford, a partir de 1980. Duas obras irão abrir caminho ao interesse que logo começa a suscitar a sua reflexão, apesar das desconfianças: «Mensonge Romantique et Verité Romanesque» (Grasset, 1961) e «La Violence et le Sacré» (id., 1972). Natural de Avinhão, filho de um conservador de Biblioteca e do Museu do Palácio Papal, radical-socialista e anticlerical, e de uma católica conservadora dada à literatura, o jovem começou por estudar as referências literárias à vaidade em Stendhal e ao snobismo em Flaubert e Proust, procurando reequacionar o destino do desejo humano, através de diversaas obras literárias, com destaque ainda para Cervantes e Dostoievski. Tratava-se de tentar compreender o funcionamento das nossas sociedades, a partir do desenvolvimento humano e da sua lógica profundamente patológica. Afinal, o homem é desejo, mas não desejo de um objeto pela sua função ou utilidade, sim um desejo daquilo que o outro possui. A relação envolve, por isso, três elementos: eu, o outro e o objeto. Daí a rivalidade que leva ao antagonismo e finalmente à violência. Daí que Girard saliente que nas condições sociais do tempo presente, há uma divergência fundamental aos olhos de hoje, entre as religiões arcaicas e a judaico-cristã. Onde as religiões arcaicas criavam um bode expiatório, que encarnava o mal, cujo sacrifício permitiria a reconciliação das massas, o cristianismo proclama a inocência da vítima – Jesus Cristo.

SINGULARIDADE DA REVELAÇÃO

Ao contrário daqueles que referem a Paixão de Cristo como um mito entre outros, René Girard afirma a singularidade e a essencialidade da revelação cristã. Esta não só rompe a lógica negativa da «violência mimética», mas também revela o substrato de toda a cultura humana – e assim o sacrifício apazigua as massas e tem uma função unificadora da sociedade. A teoria mimética permitiria esclarecer não somente a construção do desejo humano e a genealogia dos mitos, mas também a violência presente, a espiral infinita do ressentimento e da cólera. «Hoje, não precisamos de ser religiosos para sentir que o mundo está numa incerteza completa» (dizia o pensador). Daí ter considerado Girard que os atentados do 11 de Setembro de 2001 foram uma trágica manifestação do mimetismo, agora globalizado. No entanto, a comunidade científica foi olhando com muita desconfiança a tentativa de René Girard de explicar do mesmo modo desde os sacrifícios dos astecas até aos ataques do ISIS (Estado Islâmico). Contudpo, a sua originalidade é indiscutível e as pistas que lança merecem uma especial atenção crítica. No fundo, é a outra luz que se analisa o movimento de «desencantamento» referido por Max Weber (ou por Marcel Gauchet) – que aparece como um caminho que se desenvolve entre a resposta arcaica e a resposta judaico-cristã. Chegou mesmo a dizer-se que Claude Levi-Strauss tinha encontrado uma resposta estrutural para todos os mitos, exceto para os europeus, enquanto Girard teria encontrado uma resposta universal, baseada na explicação de génese, centrada no cristianismo. Inserindo este num percurso moral e cultural da humanidade, o escritor de «Des Choses Cachées depuis la Fondation du Monde» (1978) encontra nesse caminho a explicação fundamental: «o sagrado aparece com o sacrifício, que é a expulsão ritual do inimigo: enterramos a vítima nas fundações da cidade e o pacto social ameaçado renovar-se-á, tantas vezes quanto necessário pela proscrição do inimigo, a qual será tanto mais económica se for ritualizada. Com efeito, em condições normais, vale mais entregar à ira pública um bode expiatório do que arriscar uma guerra ou do que lançar massas contra outras massas».

 

VIOLÊNCIA FUNDADORA E TRANSCENDÊNCIA

Como bem recorda José Tolentino Mendonça, a propósito de haver «uma violência fundadora transferida simbolicamente para a transcendência», a «passagem das expressões sociais violentas à proposição firme e comprometida da paz não acontece por um auto-mimetismo, pois nenhum discurso religioso está na sua formulação, totalmente isento de violência. Impõe vontade e determinação. De facto, «as nossas sociedades não se definem apenas pelo quer integram, mas também pelo que excluem». Daí a necessidade de tomar consciência da violência arcaica que ainda persiste em nós… Se René Girard era um homem de fé, o certo é que nunca escondeu as suas dúvidas e limitações no tocante às explicações dos fenómenos humanos. Como salientou Jean Birnbaum: «Exegeta com uma curiosidade sem limites, (Girard) opunha à ferocidade do mundo moderno, à aceleração do mal, a virtuosidade tranquila dum leitor que nunca deixou de servir as Escrituras» («Le Monde», 6.11.2015). Note-se que René Girard deve ser lido considerando o contributo de outros autores como Giorgio Agamben e Gianni Vattimo, que manifestaram um especial interesse pela obra e originalidade de René Girard. Giorgio Agamben, em «O Poder Soberano e a Vida Nua – Homo Sacer» (tradução de António Guerreiro, Presença, 1998), fala da decadência da democracia moderna e da sua progressiva convergência com os Estados totalitários, nas sociedades pós-democráticas «do espetáculo», resultantes da confluência entre o modelo jurídico-constitucional e o modelo biopolítico do poder. Em lugar do contrato social dos princípios Giorgio Agamben fala do estado de exceção como zona de indistinção entre a exclusão e a inclusão. Trata-se, de algum modo, a materialização da confusão entre o poder político e o poder físico de que fala Kantorowicz, na sua obra clássica sobre os dois poderes da monarquia tradicional e suas sequelas… Num tempo em que a violência parece querer regressar à lógica arcaica (como temos visto com a escalada do terror de Beirute a Paris), René Girard insistia na necessidade de tirar consequências atuais da sua explicação: «estreito é o caminho entre a conservação que mantém os ritos e fossiliza a história, e o falso revolucionarismo que ao refazer a violência, refaz outros ritos que exigem mais vítimas que os ritos precedentes». O certo é que, a partir do momento em que compreendemos verdadeiramente os mitos, não podemos tomar o Evangelho como um outro mito, uma vez que é ele que nos faz compreender a realidade mítica, ela mesma… Num momento de intensas perplexidades a propósito da violência que suscita e agrava a violência, importa recordar, com Girard: que toda a violência doravante revela o que revela o lugar essencial da paixão de Cristo, a génese imbecil dos ídolos sangrentos, de todos os falsos deuses das religiões, das políticas e das ideologias»…


Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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