A Vida dos Livros

De 27 de julho a 3 de agosto de 2015.

«Ah!» de Alberto Vaz da Silva (Estuário, 1990), com fotografias de Jorge Molder, reúne um conjunto de crónicas publicadas na imprensa, através das quais podemos encontrar a diversidade de temas e interesses que o tornavam uma personalidade única e inesquecível.

SOB O SIGNO DE SOPHIA…

A vida dá voltas surpreendentes. A crónica de hoje poderia ser sobre uma recordação simples e próxima, mas também poderia chamar-se «Carta aos Amigos Mortos». Há um mês atrás não esperaria ter de a escrever. Pelo menos, assim. No fim de maio, uma vez que havia que homenagear Sophia de Mello Breyner nos setenta anos do Centro Nacional de Cultura (CNC), Maria Barroso manifestou grande entusiasmo em participar. A melhor maneira de invocar a memória da Amiga e antiga Presidente do CNC seria através da poesia. Depois de diversas combinações telefónicas fui visitá-la à Estrela, na sede da Pro Dignitate, como acontecia muitas vezes. Encontrei-a a subir no elevador eletrónico, pois tinha sofrido uma pequena queda poucos dias antes, queixando-se de problemas de equilíbrio. Com a elegância de sempre, pediu desculpa pelo incómodo e pelo atraso. Conversámos animadamente na subida da escada. Daí a poucos minutos, já no seu gabinete, estava tudo combinado. Far-se-ia uma gravação em vídeo de dois poemas de Sophia para passar no Museu do Oriente na festa do CNC, ainda que Maria de Jesus preferisse dizer os poemas de viva voz, o que só não aconteceria por um pequeno desencontro, que daria lugar a diversos telefonemas no dia seguinte, que permitiram podermos falar de outras coisas… O primeiro poema escolhido foi o belíssimo «Porque», a melhor homenagem a Francisco Sousa Tavares, a quem o CNC deveu tudo e por cujo impulso Sophia foi presidente, atraindo uma plêiade notável de jovens poetas e escritores. Essas palavras fortes, claras, serenas ultrapassam os umbrais de qualquer momento – ficam como letras de ouro e marca indelével de liberdade: «Porque os outros se mascaram, mas tu não / (…) Porque os outros vão à sombra dos abrigos / E tu vais de mãos dadas com os perigos / Porque os outros calculam mas tu não» («Mar Novo», 1958). A voz de Maria de Jesus Barroso deu a esse poema a sua força heroica, como só ela sabia fazer. E ficou-nos na lembrança a imagem de Francisco no cimo da guarita do Largo do Carmo, no dia 25 de abril. A segunda escolha foi da própria Maria Barroso, e quando hoje voltamos a ouvir a sua expressão nítida e timbrada, ficamos com uma emoção incontida e a sensação quase de vertigem. Essa gravação derradeira tornou-se premonitória e simbólica. Tudo se passa agora como se assistíssemos a um estranho mas inexorável passar de um lado para o outro através de um espelho. Em «Carta aos Amigos Mortos», Sophia disse-nos tudo o que pode ser dito neste momento. Não só lembra quantos nos deixaram, mas também compreende a fantástica força libertadora da poesia. «Eis que morrestes – agora já não bate / O vosso coração cujo bater / Dava ritmo e esperança a meu viver / Agora estais perdidos para mim / – O olhar não atravessa esta distância – / Nem irei procurar-vos pois não sou / Orpheu tendo escolhido para mim / Estar presente aqui onde estou viva / Eu vos desejo a paz nesse caminho / Fora do mundo que respiro e vejo…» («Livro Sexto», 1962). Quando nos deixa alguém próximo, como agora aconteceu, não há palavras. Mas tudo estava dito, quando ouvimos: «E eu vos peço por este amor cortado / Que vos lembreis de mim lá onde o amor / Já não pode morrer nem ser quebrado / Que o vosso coração já não bate / O tempo denso de sangue e de saudade / Mas vive a perfeição da claridade / Se compadeça de mim e do meu pranto / Se compadeça de mim e do meu canto». A escolha foi premonitória. Esse diálogo com Sophia significa o encontro do espírito, da lembrança e da liberdade.

A PRESENÇA DE ALBERTO

No mesmo dia em que fomos dizer adeus a Maria de Jesus, Alberto Vaz da Silva também partiu. E Sophia era para ele igualmente referência fundamental. Não podemos compreender bem a importância essencial da autora de «Mar Novo» sem recorrer ao testemunho crítico de Alberto. Leia-se o pequeno livro «Evocação de Sophia», com prefácio de Maria Velho da Costa e posfácio de José Tolentino Mendonça (Assírio e Alvim, 2009). É uma preciosidade. É a melhor das sínteses para entender a importância singularíssima de Sophia. E lá estão, em diálogo, todos os elementos que nos são lembrados na Carta do «Livro Sexto». Na celebração dos setenta anos do Centro, Alberto já não pôde estar, mas o seu neto Martim recebeu, em seu nome, a Medalha de Mérito Cultural do governo português (ao lado do reconhecimento de Gonçalo Ribeiro Telles). Foi uma justa e inesquecível homenagem que há muito tardava, para um dos mais apurados conhecedores da literatura e da arte em Portugal. E se falámos do conhecimento finíssimo da obra de Sophia, não esquecemos o amor da arte e a compreensão exata de Carlos Queiroz ou de Agustina Bessa-Luís. Como gostava de recordar, citando Appolonyus de Tyana: «Ninguém morre senão em aparência, do mesmo modo que ninguém nasce senão aparentemente. A mudança do ser para o devir parece ser o nascimento e a mudança do devir para o ser parece ser a morte, mas na realidade ninguém jamais nasce nem ninguém jamais morre. É apenas um ser-se visível e logo após invisível…». De uma curiosidade insaciável, Alberto soube sempre trilhar caminhos inesperados e espantosos. José Tolentino Mendonça fez, aliás, questão de recordar essa capacidade de espanto no vocabulário único do cultor do estudo dos astros ou da grafologia, em busca de psicologia das profundidades. Nunca deixou, por isso, de reler Carlos Queiroz: «Ver só com os olhos / É fácil e vão: / Por dentro das coisas / É que as coisas são». Isto tinha muito a ver com o que o Alberto era. «Um dia serei alegre!», com a «a mágoa de não sentir / Essa alegria sem par / que têm os santos a agir / E as crianças a brincar, / Essa alegria gerada / Numa suprema inocência / que toca de transcendência / Até as coisas de nada».

UMA FRASE DE SAINT-MARTIN

Vem à baila a frase de Saint-Martin: «Houve certos seres através dos quais Deus nos amou». Alberto lembrava, assim, Helena, sua mulher, e todos quantos foi encontrando nos caminhos da vida. Era assim a sua fé, feita de afeto e espontaneidade. Afinal, o seu conhecimento enciclopédico permitia-lhe fazer compreender tudo para além do imediato. Lembrando Cristina Campo, era daqueles «que desenham com as suas vidas um mapa de tal modo original que se torna necessário à viagem dos outros». Ao longo dos muitos anos, contei sempre com o seu apoio e o seu conselho. Já tenho saudades desse tempo tão próximo. O quotidiano ligava-se ao eterno, naturalmente. Leia-se em «Ah!» com as fotografias inesquecíveis de Jorge Molder (1990): «Uma casa de chá é um refúgio no meio do atropelo gritado e egoísta das cidades de hoje. Um generoso espaço de acolhimento, recomposição e encontro, quase de meditação. Uma cidade que tem casas de chá a sério dispõe de uma rede invisível de proteção contra a entropia que corrói a existência». Era assim o Alberto, olhando sempre para os mistérios que estão para além do palpável.

Guilherme d’Oliveira Martins

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