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CONTO DE NATAL :: UMA GRANDE ALEGRIA…

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura, é o Conto de Natal que a equipa do Centro partilha com todos os seus visitantes, com os votos de um FELIZ NATAL e ÓPTIMO 2015.

Uma Grande Alegria…
por Guilherme d’Oliveira Martins

«…Na região encontravam-se uns pastores, que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta deles e tiveram muito medo. Disse-lhes o anjo: “Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Hoje na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor. Isto vos servirá de sinal para o identificardes: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoira”…» (Lc., 2, 8-12). Aquela passagem sempre o intrigara. Como seria possível, àqueles pastores, poder identificar a referência da História. Por que razão o sinal era dado a gente tão simples. No entanto, a indicação era clara: «Encontrareis». Não havia sequer a indicação «Procurai». De facto, há muito que aqueles pastores sabiam, no íntimo do seu coração, que a Luz Suprema viria. Mas ninguém suspeitava que fosse daquele modo inesperado. Tão inesperado, que ninguém encontrou lugar condigno numa hospedaria. De súbito, chegou como o mais simples de todos, deitado numa manjedoira, envolto em panos. Há muitos anos que pensava naquela passagem, ponderando apenas aquelas palavras. Meditara longamente sobre cada uma delas. Lá estava o anúncio, a proclamação de uma grande alegria. E num mundo como aquele em que vivemos, que melhor sinal poderia haver senão o da alegria. Não era um fugaz sobressalto, um motivo momentâneo de júbilo, mas a realização de um sublime desejo. E tão magnífico desígnio não se limitava à singularidade de cada pessoa, era para todo o povo… Significava, pois, uma libertação do espírito, uma consumação da Verdade e da Vida. «Nasceu-vos um Salvador».

O tema é difícil para tempos tão atribulados como os de hoje. Entre incertezas e imediatismos, entre ameaças e desilusões, que significaria aquele sinal nos dias que agora corriam?
O século XXI é das comunicações altamente especializadas, da informação instantânea, da velocidade supersónica, da microinformática, das neurociências e de mil maravilhas antes impensáveis. Por isso, o sinal mais perturbador em toda aquela mensagem era a manjedoira, em lugar de um trono, de um palácio, de um centro de referência, de uma nave sideral que pudesse atrair o público com um mínimo de circunstância e pompa. Nada disso! Apenas havia um lugar esconso, o cheiro de um estábulo e uns animais corriqueiros. Onde poderia estar a atualidade daquela passagem antiga? E, no entanto, não havia dúvidas que aquele era o enigma fundamental, o tesouro escondido de que se fala desde tempos imemoriais… A esse momento da reflexão, juntava-se outro. O texto surpreendente acrescentava: «De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado”. Quando os anjos se afastaram deles em direção ao Céu, os pastores disseram uns aos outros: “Vamos até Belém e vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer”. Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoira. E quando o viram, começaram a espalhar o que lhes tinha sido dito a respeito daquele Menino» (Lc. 2. 13-17). É espantoso como o «Encontrareis» surge com uma tão grande precisão e naturalidade. Foram apressadamente e encontraram. Dir-se-ia que tudo se passa como se fosse ao virar da esquina. E, no entanto, estamos perante um mistério supremo, que permanentemente se reafirma no coração de cada um, sem explicações científicas, sem demonstrações outras que não sejam as da esperança.
Charles Péguy em «Os Portais do Mistério da Segunda Virtude», um dos magníficos cânticos à Esperança, lembra-nos: «A jovem esperança, / O movimento da esperança. / Quando um sangue novo começa a refluir no coração. / Como a seiva nova de abril começa a gotejar, / a brotar da dura casca. / Que ordem, que autoridade, que brutalidade, / que humilhação a da esperança» (tradução de Armando Silva Carvalho, Paulinas, 2014). Aí está uma insondável pergunta. E o certo é que são naturais as sombras da dúvida, da incerteza, da incredulidade. Vejamos o que aconteceu. «Todos os que ouviram se admiraram do que lhes disseram os pastores». Ainda hoje nos admiramos, mas esses pastores logo O encontraram, guiados pelo impulso do coração. «Quanto a Maria, conservava todas estas coisas ponderando-as no seu coração». Esta é talvez das passagens mais belas de S. Lucas e de toda literatura.
Conservar os sinais. Procurar ouvir do mais fundo do Ser. Se os pastores se apressavam, Maria representava a quietude da permanência e da eternidade. Ponderava para si «todas estas coisas», que para todos nós continuam insondáveis. «E os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora anunciado».
Palavra por palavra, continuava a hesitar sobre o real significado de tudo isso. Afinal, os grandes mistérios encerram sempre marcas contraditórias – e a esperança é o exemplo do que apenas se pode apreender pela capacidade de ver o direito e o avesso do mundo… De novo vem à baila a expressão do Poeta Péguy: «Milagre é o vaso que se quebra, / Que se quebra perpetuamente, / E não perde uma gota de licor». E, ali, milagre era haver uma manjedoira.
Esse era o sinal de exceção. Afinal, tinham-se encerrado todas as portas. Diriam os historiadores que era o efeito do recenseamento de César Augusto e que havia uma especial afluência à cidade de Belém, mas de facto era estranho que apenas existisse aquele lugar vulgar, que de um momento para o outro se tornava sublime, assinalado por uma estrela inesperada, que, no entanto, estava anunciada desde o princípio dos tempos.
Mas que significado atribuir a tantos desencontros para permitir um verdadeiro encontro? Como incessante interrogador, ele continuava a perguntar-se, a propósito de algo tão natural e simples, que conhecia desde que existia. Todos os anos, primeiro os avós, depois os pais, os irmãos, os filhos iam repetindo o gesto primordial de encontrar musgo, de dispor as figuras, de armar a gruta, de encontrar uma manjedoira que pudesse assemelhar-se à original. A imaginação e a fantasia são inesgotáveis. As crianças exigiam sempre algo mais: a vaca e o burro, as ovelhas, os pastores, as lavadeiras, talvez uma orquestra popular, os Magos… Cada figura tinha o seu lugar e função, numa representação do mundo. E havia que encontrar a magia múltipla das luzes, que dava a marca da multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”. E recordando esses tempos imemoriais, em que tudo parecia feliz e não havia a falta das pessoas que fomos perdendo e enchem a nossa memória, persistia a grande incógnita sobre o real significado daquela manjedoira, lugar de alimento daqueles simples animais que, de um momento ao outro, viram os seus domínios ser invadidos por desconhecidos e por uma súbita e incompreensível luz, que era muito mais do que a das luminárias dos pastores. A pouco-e-pouco, a manjedoira tornou-se o centro de tudo, lugar sagrado, cálice do carpinteiro, a acolher o corpo frágil de um recém-nascido. E a luz era irradiante, clara, natural, serena, transformando, de súbito, o lugar em símbolo da humanidade toda. Não uma humanidade abstrata e vaga, mas feita de pessoas concretas, com anseios, com esperanças, com dúvidas, angústias e certezas, capazes de sentir, de ver, de ouvir, de dar e receber a quantos são os próximos – a outra metade de todos nós. O enigma começou a esclarecer-se. E assim se começou a entender a luminosidade que os artistas encontram na representação do presépio – como na pintura, que está na Pinacoteca de Munique, da autoria de Rembrandt, intitulada «A Adoração dos Pastores». Aí apenas há um ponto de luz, que não tem origem nas lanternas dos circunstantes, mas sim na manjedoira, onde está o Menino, assemelhando-se à luminosidade que o genial artista de Amesterdão usou na «Ceia de Emaus», que se encontra no Louvre. Aí está a força da Revelação. E a manjedoira ganha, de pleno, o sentido de recipiente sagrado, símbolo de Verdade e Vida. E o misterioso «Encontrareis» tinha, afinal, a ver com essa luz, única, indefinível, que não precisaria de outra indicação para se tornar presente…

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