A Vida dos Livros

De 15 a 21 de dezembro de 2014

Publicamos hoje o resultado de uma investigação inédita sobre a identificação e cronologia das refeições dos chamados «Vencidos da Vida» (publicada em primeira mão pelo JL, na passada semana), graças à consulta do jornal «O Tempo», dirigido por Carlos Lobo d’Ávila (coleção da Biblioteca Nacional de Portugal). Foi, assim, possível chegar à identificação correta das datas em que o célebre grupo se encontrou, pondo termo às dúvidas existentes.

UMA BOA OPORTUNIDADE
Um dia destes, uma investigadora de questões de moda fez-me chegar a pergunta sobre onde estaria o original da fotografia dos «Vencidos da Vida» tirada em casa de Bernardo Pindela (depois Conde de Arnoso), na Rua de S. Domingos, à Lapa, em que dez dos onze membros do grupo se encontram de pé e alinhados, podendo-se apreciar as respetivas indumentárias. Sempre conheci duas outras fotografias tiradas nesse almoço do grupo, uma das quais ainda se encontra na posse de meu Pai, tendo pertencido a Oliveira Martins. A primeira vez que vi a reprodução da imagem que me era referida foi em setembro de 1983, graças a Guilherme de Castilho, na sua edição da «Correspondência de Eça de Queiroz». Devo esclarecer que o escritor referia tratar-se de uma fotografia pouco conhecida, reproduzindo-a de um recorte de revista. Até hoje nunca a vi o original, e na última edição da Fotobiografia de Eça, o meu amigo arquiteto Campos Matos conseguiu uma boa digitalização da mesma. Tive, no entanto, oportunidade para verificar haver falta de informação sobre o momento em que a referida fotografia foi tirada, pelo que vou procurar arrumar ideias sobre o dia provável em que a fotografia foi tirada, e sobre a razão de ser do suposto «vencidismo», que se desenvolveu como mito, criticado desde muito cedo pelos próprios intervenientes do grupo.

A CRONOLOGIA

Mas vamos às refeições, na maior parte dos casos jantares. Sigamos a sua cronologia. Os convivas iniciais teriam sido os parlamentares das duas câmaras – Ficalho, Oliveira Martins, Carlos Lobo d’Ávila e António Cândido Ribeiro da Costa. O primeiro de todos os ágapes foi no restaurante Tavares e seguiu-se ao discurso do Conde de Ficalho na Câmara dos Pares de 28 de junho de 1888, em que se denunciava a inaceitável paralisia da vida política. Logo em julho de 1888, Oliveira Martins, nas colunas de «O Repórter»: perguntava: «Por que não haverá um jantar semanal, um jantar alegre e até um bom jantar, a carta constitucional de um partido novo?». Mas, a que se deve a designação de «Vencidos da Vida»? O autor de «Os Filhos de D. João I», ao ouvir, nesses dias, o seu vizinho do terceiro andar da Calçada dos Caetanos, Ramalho Ortigão, ler uma descrição sobre a voga parisiense dos jantares, achou que podia usar o exemplo. À semelhança do caso então referido da Villa de Médicis – «les uns glorieux, les autres battus de la vie» – eis que o historiador considera ser uma boa ideia para o novo grupo: Vencidos da Vida… Aos parlamentares, seguiram-se os literatos (Ramalho, Eça de Queiroz e Junqueiro) e depois os palacianos, próximos do Príncipe D. Carlos (Bernardo Pindela, Sabugosa, Soveral e Mayer). Esclareça-se que é o grupo alargado que está em causa, nos jantares de 1889. E é o «Tempo», jornal de Carlos Lobo de Ávila, que nos permite fazer o seu elenco. Em 16 de fevereiro de 1889, juntam-se oito em casa de Bernardo Pindela (Ficalho, Sabugosa, Ramalho, Oliveira Martins, António Cândido, Carlos Mayer e Lobo de Ávila). Em 11 de março, há jantar no Hotel Braganza. A 20, «os vencidos» encontram-se no mesmo hotel para acolher Luís de Soveral, chegado de Londres, onde era 1º secretário da Legação portuguesa. Em 26 de março, ainda no Braganza, recebem Eça de Queiroz, vindo de Paris, tendo Guerra Junqueiro justificado a falta, por se encontrar no Minho, com o envio dois alexandrinos. Em 29, foi a vez de Carlos Mayer oferecer jantar em sua casa, a que também não compareceu Junqueiro… Neste caso, houve música, tendo Ramalho e António Cândido tocado rabeca e todos seguido para o S. Carlos, onde se cantava o «Otelo» de Verdi. Mas voltemos à lista: a 10 de abril, encontraram-se no Tavares e no dia 2 de maio regressaram a S. Domingos, à Lapa, para almoçar na casa de Bernardo Pindela. Na semana seguinte, a 9, o regenerador António Serpa Pimentel foi convidado pelo grupo, no Braganza (o que causou grande vozearia e especulação política). No dia seguinte, Jorge O’Neill convidou para sua casa, tendo faltado Junqueiro, Pindela e Cândido. Em 14 de maio, houve jantar em casa do Conde de Valbom, com a presença de Junqueiro, Eça e Oliveira Martins, Pindela e Alberto Braga. A 17 de maio, celebraram-se os 29 anos de Carlos Lobo de Ávila, em casa de seu pai, o Conde de Valbom, onde foi cantado, com versos de Sabugosa, o hino humorístico do grupo, com música da «Rosa Tirana». Por fim, a 21 de maio, houve novo jantar em S. Domingos, à Lapa, a que faltaram Ficalho e Sabugosa. Esta é a lista coeva, tudo apontando, assim, para que tenha sido 2 de maio de 1889 o dia em que o fotógrafo Augusto Bobone (1852-1910) realizou as fotografias que chegaram até nós, nas quais apenas falta António Cândido. Há, pois, só uma fotografia, realizada em estúdio, com a equipa completa dos onze membros, de que não temos indicação quando foi realizada em 1889.

ÚLTIMOS JANTARES: VENCIDOS OU VENCEDORES?

Eça referirá ainda um «jantar de Vencido» em Paris com Luís Soveral, na Maison d’Or, com bacalhau, após o que foram, com o Príncipe D. Carlos, visitar a Torre Eiffel, em 27 de agosto de 1889. E António Cândido dirá, em entrevista a Gomes Monteiro (ABC, 16.3.1922): «Oh! Os Vencidos da Vida! – como isso vai distante. (…) A ideia da formação do grupo surgiu um dia, espontânea, imprevista, entre uma colherada de doce e uma gargalhada de champanhe no restaurante Tavares, na rua Larga de S. Roque. Oliveira Martins lembrara o título Vencidos da Vida, que todos aplaudiram e, pouco depois, o Conde Sabugosa compunha uns versos que, com música da Rosa Tirana constituíam o hino do nosso grupo. (…) Soltando sempre as suas gargalhadas espirituosas e cáusticas continuavam a fazer servir jantares elegantes em que se chegou a gastar dezoito vinténs de pão e bacalhau e dezoito mil réis de champanhe…». E a «águia do Marão» lembrava ainda o jantar de despedida, oferecido a Antero de Quental, de finais de maio de 1891, no Tavares… «Pobre amigo! Parece-me estar a vê-lo… No seu olhar melancólico e profundo, em que se adivinhava a nostalgia do Além, pairava já a visão da morte que tão tragicamente o arrebataria. Pobre Antero!»… Sabugosa (lembrado por Silva Gaio) disse que o «vencidismo» era difícil de classificar. «Foi um estado de espírito originado de afinidades já existentes e das que uma convivência delas nascida, mais avolumou e multiplicou». E Eça recordou que os detratores talvez se irritassem pelo facto de se chamarem a si Vencidos «aqueles que para todos os efeitos públicos parecem ser realmente vencedores». Este, no fundo, é o grande tema. A cultura portuguesa do século XX foi profundamente marcada por esses homens que se chamaram de vencidos criticamente por causa daquilo que Eduardo Lourenço sintetizou: «interrogávamo-nos apenas pela boca de Antero e de parte da sua geração, para saber se ainda éramos viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência». Daí Unamuno ter considerado esse o nosso século de ouro. Não poderia haver fatalismo, mas sim sentido crítico, para que os mitos não se tornassem bezerros de ouro.
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Guilherme d’Oliveira Martins.  
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