A Vida dos Livros

de 21 a 27 de julho 2014

No início da época que outrora se designava de vilegiatura, recordamos um pequeno livro célebre de Ramalho Ortigão, «As Praias de Portugal – Guias do Banhista e do Viajante» (Quetzal, 2014). É extraordinário como o país mudou, mas é delicioso ver como era Portugal no final do século XIX.

O MAR NA ÍNDOLE DA GENTE
É um lugar-comum referir o prazer da viagem. É verdade que tempo houve em que o desconhecido ameaçava o imaginário das sociedades antigas, incapazes de dispor de instrumentos suscetíveis de navegar por mares incertos e de chegar a lugares que prometessem riqueza e bem-estar. Os conhecimentos vindos do oriente através do Mediterrâneo permitiram, porém, navegar com recurso aos astros, com embarcações mais seguras e suscetíveis de lidar com correntes e ventos traiçoeiros. No caso português, os genoveses trouxeram-nos o seu saber e a sua experiência e os Altos Infantes souberam rodear-se de práticos, cientistas, astrónomos, cosmógrafos, construtores de navios, artesãos de velas, sábios construtores de complexos meios de localização e de orientação. Muitas vezes surpreendemo-nos por se falar do nosso Infante D. Henrique, designando-o como Navegador, sabendo-se que quase nunca andou embarcado nas naves que afrontavam a seu mando os mares. No entanto, sem o seu conhecimento e a sua direção, sem a estratégia política e económica que concebeu, nada teria sido possível. Diga-se ainda do Infante D. Pedro das Sete Partidas, que reuniu a informação preciosa e necessária para começar. E quando lemos o «Leal Conselheiro» de D. Duarte, percebemos que é uma conceção nova aquela que nasce com essa obra a compreensão desse tempo. Se chegou à corte o livro de Marco Polo, se os ecos de Veneza e Génova fizeram germinar projetos e ideias, se os mapas de Fra Mauro desafiaram o engenho, se o franciscanismo mudou a relação com a natureza, abandonando os medos e tornando a irmã natureza um destino desejado por Deus – a verdade é que a viagem entrou na índole da gente portuguesa.
 
ESTE APEGO À NECESSIDADE DE PARTIR…
Ramalho Ortigão (1836-1915) no seu pequeno livro de 1876 sobre «As Praias de Portugal», delicioso testemunho sobre a moderna conceção de viagem e de movimento (eufemisticamente designado por «tourisme»), lembra com ênfase: «Para os Portugueses, o Mar tem atrativos especiais. Para nós ele é o caminho das conquistas, dos descobrimentos, da poesia, da inspiração artística da glória nacional». Hoje, quase sorrimos porque sabemos que o Mar é isso e muito mais, envolvendo outros complexos desafios. No entanto, compreendemos o sentido da expressão de Ramalho. Fala-nos da nossa bela arquitetura manuelina, das capelas imperfeitas na Batalha e dos Jerónimos, dos ornatos de cunho marítimo, do espírito de marinheiros. Recorda-nos «Os Lusíadas» como um poema marítimo e refere «a mais extraordinária obra que em Portugal se tem escrito em prosa», a «História Trágico-Marítima»: «nunca o talento dramático produziu rasgos mais comoventes, efeitos mais profundamente tocantes, nunca a tragédia achou notas mais sentidamente elegíacas; nunca a arte descritiva tornou mais palpitante e viva a ação narrada; nunca, finalmente, a ciência da linguagem e o poder do estilo acharam para um assunto formas mais adequadas, toques mais profundos, simplicidade mais real, mais pitoresca, mais sugestiva, mas completamente e mais cabalmente artística». A identidade faz-se, assim, da relação com o Mar, como símbolo de um futuro desconhecido. E se os escritor de oitocentos invoca a épica lembrança do naufrágio pungente de Sepúlveda, não esquece o romanceiro popular da «Nau Catrineta» e a sua história de pasmar, em que o demónio deseja comprar a alma do capitão, mas este apenas responde, segundo a melhor genealogia marinha: «A minha alma é só de Deus, / E o meu corpo é do mar». Deste modo, a tradição do nosso romanceiro faz-se de um constante peregrinar, cheio de desafios e provações, de alegrias e tragédias, que leva Camões na célebre Canção VII a dizer por antonomásia: «Aqui nesta remota, áspera e dura / parte do mundo, quis que a vida breve / também de si deixasse um breve espaço, / por que ficasse a vida / pelo mundo em pedaços repartida». E, ao lermos Fernão Mendes Pinto ou Diogo do Couto, facilmente entendemos como a viagem é matéria-prima de vida e de literatura, de existência e de pensamento. A viagem torna-se, assim, consequência e continuidade da confluência de diversos povos e influências, num extraordinário cadinho de diferenças. A hospitalidade tem consequência no desejo de encontro do diferente, de outros lugares e de outras gentes. O fascínio da viagem ganha, assim, força e sentido.
 
DIFERENÇAS CAPAZES DE REUNIR…
E se procuramos esses sinais de sermos diferentes, eis que, depois da multiplicação de funções, minuciosamente descrita, o Padre António Vieira nos vem conceder uma chave, que permite entender como a viagem se inicia no começar, e aí ganha alento, prosseguindo na consumação da partida e do encontro, sempre rodeado de mistério, de perguntas e de surpresas. «Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer toda a terra. Para nascer Portugal, para morrer o mundo» (Sermão de Santo António dos Portugueses em Roma, 1670). Eis por que razão a noção de identidade se torna aberta, heterogénea e disponível. O viajar torna o viajante cosmopolita, torna-o mais desperto e atento, mesmo quando vamos ao encontro do país próximo, como de terra estranha… Se percorrermos a escrita de Ramalho encontraremos, além da invocação do Mar, como elo, sendo o país antigo que aqui se revela, de norte para sul: a Foz, Leça e Matosinhos, Póvoa de Varzim, a Granja, de Pedrouços a Cascais, Vila do Conde, Espinho, Ericeira, Nazaré, Figueira, Setúbal, além das praias obscuras, do tratamento marítimo, das precauções higiénicas, dos socorros aos afogados, e dos conselhos às mães sobre o banho frio… Foz! Saudosa Foz! Da infância do autor. «O habitante de Leça foi por muito tempo para nós como o habitante da antiga Lua – um problema». Pedrouços (onde vai…) – era «a mansão oficial da vilegiatura burocrática de Lisboa». A Póvoa convertia-se em enorme estalagem com quartos a todo o preço… «A Granja é uma povoação diamante, uma estação bijou, uma praia de algibeira». Todos se conheciam, o mundo todo lá estava… A Cascais ia-se de vapor e era «o centro mais completo, o mais fino extrato da vida elegante em Portugal». A pacata Vila do Conde, e não espanta que tenha sido escolhida por Antero, era a menos frequentada, mas «uma das mais pitorescas e mais belas povoações marítimas de Portugal»… A Ericeira é com Olhão, para Ramalho, a mais asseada de todas as praias… A Nazaré era cómoda e festiva. Na Figueira (ou não estivesse próxima de Coimbra): «há uma atmosfera especial de pedantaria, de vigor e de troça»… Em Setúbal, Tróia e a serra da Arrábida marcam pelo carácter laborioso. Entre as praias obscuras surpreendemo-nos de ver lá Âncora e Afife, Costa Nova, S. Martinho do Porto, Santa Cruz, S. Pedro de Moel – e do Algarve nem sombras… Ah! E que cuidados… «Ao ir para o banho deve-se ter em vista que tenham cessado completamente os trabalhos da digestão»… «A duração do banho depende da temperatura da água, da força da onda e da constituição do banhista». E, para as mães, o conselho enternecedor: «o uso habitual e quotidiano do banho frio exerce na saúde a mais feliz influência»… E esta, hein…   

 

Guilherme d’Oliveira Martins 

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