A Vida dos Livros

de 21 a 27 de Abril de 2014

Quarenta anos depois de 25 de Abril de 1974, mantém-se a necessidade de compreender. Alfredo Cunha e Adelino Gomes, acabam de publicar «Os Rapazes dos Tanques» (Porto Editora, 2014), enquanto «O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril», de Avelino Rodrigues, Cesário Borga e Mário Cardoso (Planeta, 5ª edição, 2014), se mantém com o grande clássico.

ENTENDER O 25 DE ABRIL…
Não é possível entender o 25 de abril de 1974 sem o inserir no longo prazo da história. Quando lemos Fernão Lopes a descrever os acontecimentos de Lisboa de 1383, percebemos que há, na distância do tempo, elementos comuns de determinação e rebeldia, que nos levam a pensar noutros momentos cruciais de mudança política. Nessa circunstância, foi lançada uma nova legitimação do poder, que culminaria nas Cortes de Coimbra, pela verificação de que o trono estava vago, e pela aclamação pelos Estados do reino de D. João I como novo monarca. Como disse Jaime Cortesão: «a Nação só atingiu a maioridade política e a plena expressão nacional com a revolução democrática do século XIV, conforme lhe chamou Oliveira Martins, e o triunfo e incorporação das classes populares na vida política». Até então, havia regiões, classes e cidades, com interesses divergentes, só depois o movimento dos concelhos vai fazer nascer o conceito de Nação. Como defendeu Alexandre Herculano, foi da aliança entre os municípios e o poder real que resultou a força e a consolidação de Portugal. O Estado precedeu a Nação. As cidades que ganharam importância política desde D. Afonso Henriques e D. Dinis contribuíram para eleger o Mestre de Avis e assegurar a independência nacional. A leitura da obra fundamental «Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal» de Cortesão permite-nos compreender os fundamentos do Estado instituído no ocidente peninsular. Um forte sentido de autonomia, a articulação da diversidade cultural, a ocupação do território por uma população permanente e perdurável, a tendência atlântica, a elaboração dos primeiros elementos nacionais da língua à urbanização dos grandes centros moçárabes e a criação gradual de uma consciência nacional – tudo isso determinou a persistência de uma Nação que, sendo originalmente europeia, se projetou universalmente no mundo como matriz de uma cultura de «humanismo universalista», língua de várias culturas, cultura de várias línguas.

UMA VOZ NO LARGO DO CARMO…

Pensar no 25 de abril é, assim, referir um acontecimento que se insere numa longa continuidade histórica, que Francisco de Sousa Tavares bem compreendeu no Largo do Carmo, em cima de uma guarita, como o primeiro civil a falar, invocando o paralelismo como o Primeiro de Dezembro de 1640. Ao fazê-lo, afirmou que era um sinal inequívoco de independência histórica que ali estava a ser dado. De facto, 1974 situou-se num encadear de acontecimentos que vem da independência do Estado no século XII. Daí se parte para o misterioso desenlace da crise de 1383-85, continuando na afirmação dos tempos de coruja e de falcão do Príncipe Perfeito, na chegada à India com D. Manuel e no movimento pendular que envolve o desastre de Alcácer-Quibir e o renascimento da Restauração da independência – e desde o século XVIII: a glória do ouro, a maldição do terramoto, a reconstrução e a reforma de Pombal, a guerra peninsular de libertação nacional; bem como a difícil afirmação do liberalismo constitucional – 1820, guerra civil, vitória liberal, revolução de setembro de 1836, nova guerra civil, estabilidade da regeneração, ultimatum, bancarrota, primeira República, Estado Novo. Eduardo Lourenço começa, sintomaticamente, em «O Labirinto da Saudade», a citar o seu mestre Joaquim de Carvalho numa afirmação essencial para compreendermos quem somos e para onde vamos: «as nações, com a responsabilidade histórica da gente portuguesa, não podem imobilizar-se estaticamente, nem devem iludir-se infantilmente; têm de desentranhar sucessivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar em concordância com o seu ser permanente». A pertinência da consideração não oferece dúvidas. Daí que falar de 25 de abril de 1974 seja superar a comemoração de quatro décadas, para atingirmos o cerne da afirmação da liberdade, da democracia e da emancipação cívica. Eduardo Lourenço pede-nos, assim, no ensaio publicado em «Raiz e Utopia», que venhamos para dentro de casa, que percebamos que importa conjugar o interesse nacional e o interesse social e que cultivemos «a nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmos e Portugal connosco». Profeticamente, o europeísmo do nosso ensaísta liga-se à melhor compreensão de Portugal – europeizar Portugal sem deixarmos de ser nós mesmos, cultivando a liberdade, a história e a ciência. E assim voltamos a Garrett na sua reflexão sobre Portugal na Balança da Europa ou a Antero nas Conferências do Casino. Eis por que razão, nesta celebração de quarenta anos, não se trata de regressar historicamente ao tempo pretérito, mas de afirmar a democracia e a liberdade como realidades incompletas e atuais. Como recordei no último número da revista «Esprit» (março-abril, 2014), sobre a nossa data, João Fatela tinha razão em 1979 quando afirmava que «se a democracia não se constrói sem compromisso, só o exercício coletivo da liberdade o torna possível», do mesmo modo que Agustina Bessa-Luís na «Crónica do Cruzado Osb» dizia que a nossa revolução não foi algo tivesse a ver com a vitória de uma classe sobre outra ou com um ajuste de curto prazo, mas de alguma coisa mais profunda, talvez o fim de um medo milenar ou do desprezo de si-próprio.

«OS RAPAZES DOS TANQUES»
Ao vermos e lermos «Os Rapazes dos Tanques», testemunho vivo de história vivida, de Alfredo Cunha (imagens) e Adelino Gomes (texto), percebemos o cartaz que resultou do encontro entre Sophia de Mello Breyner e Maria Helena Vieira da Silva – «a poesia está na rua». Nota-se a generosidade de quem veio para a rua em nome da liberdade, e de quem regista os acontecimentos inéditos, inesperados e imprevisíveis. Salgueiro Maia, com olhar genuíno e puro, enche o teatro do momento mágico. É o «instante feito história», na expressão de José Carlos de Vasconcelos. E há uma sobreposição de acontecimentos, uma vez que, sem se repetir, a história vai-se sempre reconstruindo. Lídia Jorge em «Os Memoráveis» fala dos «eus» que taparam os cinco mil que puseram em andamento aquela relojoaria que permitiria restaurar a democracia e cumprir as promessas do Movimento das Forças Armadas. E o tal estranho milagre afinal aconteceu. Em nome dos cinco mil, o cabo-apontador José Alves Costa é o novo «soldado desconhecido», felizmente vivo e reencontrado. Ora, sendo a história uma realidade viva e a democracia uma flor muito frágil, sinal permanente de imperfeição, do que se trata é de atualizar a herança da liberdade, como esperança e futuro, que é o que sentimos na herança perdurável do fio que une os diversos gestos emancipadores ao longo dos tempos, sempre sujeitos ao movimento pendular. Mais do que discursos que o vento leva, importa cuidar do exemplo e da palavra, o que obriga a preferir a perenidade do espírito de resistência – desde Fernão Lopes até aos nossos dias.

Guilherme d’Oliveira Martins 

Subscreva a nossa newsletter