Reflexões

De 24 a 30 de Janeiro de 2005

“Miguel Torga (1907-1995) morreu há dez anos. Nascido em S. Martinho da Anta, no coração de Trás-os-Montes, deixou-nos a recordação bem viva da gente e da terra: «homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra(…)”

REFLEXÃO DA SEMANA
De 24 a 30 de Janeiro de 2005


Miguel Torga (1907-1995) morreu há dez anos. Nascido em S. Martinho da Anta, no coração de Trás-os-Montes, deixou-nos a recordação bem viva da gente e da terra: “homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra. Cobrem-se com varinos, mantas e mais roupas de serrobeco ou de colmo…” Havia os que iam, para o Brasil e os que ficavam, na labuta da terra, repetindo os gestos imemoriais. “E quando morrem deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia” (“Um Reino Maravilhoso”). Adolfo Rocha, de seu nome civil, andou pelas águas da “Presença”, participou na reflexão da mocidade coimbrã, mas depressa compreendeu que o seu percurso deveria ser individual e solitário – percebendo que a sua vocação não era ser “camarada de poucos”. Adoptou como mestres Miguel de Cervantes, o sublime autor do Quixote, e Miguel de Unamuno, o pensador do “sentimento trágico da vida”. Tornou-se, assim, Miguel sentindo e assumindo os ventos da “civilização ibérica”. João Abel Manta representou-o, por isso, nos “Diálogos Confidenciais” entre os dois mestres. O seu percurso individual ainda é hoje incompreendido. O facto de não ter pertencido a uma escola leva a que seja inclassificável e a que alguns desvalorizem injustamente o seu papel na cultura portuguesa. No entanto, Torga foi um intelectual complexo – poeta, ensaísta, cidadão atento, cultor da língua como poucos. Foi um resistente e um rebelde, um inconformista na linhagem de Vieira, de Herculano ou de Antero. Não se deixou deslumbrar pelo imediato e pelo momento. Mas nunca foi indiferente ao que se passava à sua volta e a justiça foi um horizonte sempre presente na sua reflexão e na sua obra. Crítico severo da facilidade, permanente vigilante na cidade dos homens (para usar a expressão de D. Mourão-Ferreira), procurava caminhos novos como modo de melhor encontrar sentido para a existência. Liberdade e responsabilidade são verso e reverso da mesma exigência humana. E essa palavra liberdade, “tanto pode ser, articulada, a branda carícia de um sussurro de confiança e de paz, como um desabrido grito de desespero e de guerra”… “Hoje/ Sei apenas gostar/ Duma nesga de terra/ Debruada de mar” – assim se exprimiu sobre Portugal. E sobre Trás-os-Montes? “Embora haja muita gente que diz que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite”. E sobre a brandura dos nossos costumes? “É na denúncia irresponsável, na perfídia impune, na aleivosia anónima que cevamos a maldade. Realmente nunca matamos o toiro. Cobrimo-lo de farpas, cristãmente”. O tempo passou, mas a memória e o exemplo de Miguel Torga estão bem presentes na nossa cultura.

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